Meu primeiro encontro com o Dalai Lama

Como todo bom encontro, não foi planejado. A agenda oficial não apontava compromissos, nem indicava onde ele estaria nesta semana. Só quando cheguei a Dharamsala descobri que o governo tibetano em exílio sediava o evento de uma sociedade internacional de cientistas. E que o Dalai Lama era o principal convidado.

O tema do seminário – Compulsões, Desejos e Vícios – era ideal para aprofundar teses do budismo, filosofia que prega o domínio da mente como forma de encontrar Deus em nós mesmos. E foi ali que nos encontramos. Não um encontro propriamente dito, considerando que estávamos a poucos metros de distância, separados por prédios diferentes. Limitadíssimo a pesquisadores e monges, o seminário era retransmitido via telão para centenas de moradores e estrangeiros espalhados por colchonetes em um dos templos do QG tibetano.

O uso do termo His Holiness (Sua Santidade) chega a destoar da simples figura curva, sentada na mesa redonda sem distinção dos demais convidados. Envelopado até o queixo no manto carmim, o Dalai ouvia atentamente a palestra do dia. Balançava a cabeça quando concordava com algo, e vez ou outra pedia auxilio ao tradutor para não perder algum raciocínio importante. Percebi que a idade avançada pouco afetou a expressão dos olhinhos curiosos por trás dos óculos de grau.

O palestrante do dia era o renomado monge de origem francesa Matthieu Ricard, que eu já conhecia de outros carnavais. Ele falava sobre evitar pensamentos compulsivos com o treinamento persistente da mente, dia a dia, emoção a emoção. Está aí uma das coisas que mais gosto no budismo: não basta esperar dádivas do céu, enviadas por um Deus invisível e etéreo. Tudo tem que ser conquistado com esforço e determinação, a partir da autoanálise e da perfeita ciência do funcionamento da nossa mente, aqui e agora.

Em sua principal intervenção, o Dalai destacou que um bom antídoto para combater vícios e desejos é o altruísmo. Segundo ele, as compulsões são muito centradas no eu, e quando mudamos o foco para as necessidades alheias, esses pensamentos perdem força. Entre uma frase e outra, tiradas bem humoradas e sonoras gargalhadas faziam a plateia rir com o coração.

Entre as várias perguntas e respostas da mesa redonda, surge o assunto China. Considerando tudo o que vi e li nesses dias em Dharamsala, escuto incrédula o líder tibetano falando com carinho do país que está quase dizimando seu povo. “Temos que permanecer juntos, somos irmãos”, disse. E a compaixão pura jorrando da sua boca, se embrenhando em nossos corações embrutecidos pela ignorância sobre o sentido do verdadeiro amor incondicional.


Esquizofrenia anglo-indiana

Índia, yes sir.

Índia, yes sir.

Se eu tivesse que chutar qual foi o último lugar onde os ingleses estiveram antes de desocupar a Índia, eu diria Shimla. A sensação é a de que eles acabaram de sair, como uma família que precisa deixar a casa às pressas fugindo de algo. Tudo fica mais ou menos como estava, aquela presença ainda está ali, mas de um jeito meio estranho. Pudera, 1947 foi ontem mesmo.

O ar fresco e as lindas paisagens de pinheiros entre as montanhas em nada lembram o calor sufocante e poeirento das paragens mais ao sul. Não é a toa que os oficiais ingleses vinham para cá de mala e cuia com toda a família durante os tórridos meses do verão indiano.

Carros não entram na Shimla turística, e estar longe das buzinas pela primeira vez em semanas causa um tilt na percepção geográfica. Catarrar no chão, coisa tão natural para ambos os sexos, aqui é proibido. Fumar em qualquer local público: proibido. Fazer xixi na rua, proibido (por incrível que pareça isso é exceção, pois várias cidades têm mictórios estruturados no meio da rua, a coisa mais normal do mundo). Vacas e necessidades de vacas? Não se vê por aqui. De repente por isso o ar puro das montanhas se mantém tão imaculado.

Os prédios são ingleses. As ruas têm nomes ingleses. Jesus voltou a dar as caras em pelo menos três igrejas que achei pelo caminho. As roupas são as mais ocidentalizadas até agora, com lojas da Tommy Hilfiger, Lee, Benetton. O uniforme escolar das crianças é aquele terninho com suéter e gravatinha – calça social para os meninos, saia plissada para as meninas.

Esse é o lugar mais turístico que vi na Índia para os indianos, que vêm às centenas com toda a família ou em lua de mel. Turistas estrangeiros, só alguns senhores ingleses bem de idade. De repente saudosos do lugar onde passaram a infância. Ou de repente apenas curiosos sobre a remota Shimla da qual ouviram falar um dia.

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p.s.: tirem suas próprias conclusões no álbum que acabei de carregar no Flickr.


Guru

Antes de chegar ao ashram, li muitos artigos de ocidentais que procuram esses retiros e saem como chegaram. No meu caso, várias experiências foram marcantes, como as conversas com o guru depois das cerimônias no Ganges. Impossível ficar indiferente à fé das pessoas que vêm até aqui em busca de conforto, solução, bênçãos e agradecimento.

O Swami Chidanand Saraswatiji não é daqueles espirutualistas contemplativos de aspecto sereno. Pelo contrário, é um homem atento, de olhar incisivo e gestos rápidos. Seu currículo com várias iniciativas humanitárias, educativas, sociais, interreligiosas, políticas e ecológicas parece estar mais de acordo com o mundo em que vivemos, tão carente de tantas coisas para já.

As pessoas vêm de todas as partes do mundo para ter aquele breve momento com ele, e a devoção  é tocante. Quando se aproximam, os olhos dos fieis se enchem de ternura e de emoção, e eles fazem reverência tocando a testa próximo ao local onde o Swamiji está sentado.

Os objetivos são dos mais diversos. Alguns fazem perguntas complexas sobre espiritualidade ou deveres como hindus. Outros trazem doações. Um engenheiro americano veio oferecer seus serviços para ajudar no projeto de limpeza do Ganges tocado pelo ashram. Famílias trazem celulares para que o guru abençoe a foto de alguém que está doente ou que acabou de nascer (os hindus acreditam muito no poder da imagem para fins religiosos).

Mas ontem não me aguentei com uma família enorme de avós, pais e filhos que veio ter com o Swamiji. Eles pareciam muito simples, e quem falou em nome de todos foi o patriarca. Ajoelhado em frente ao guru, as palavras em hindi diziam menos que os olhos cheios de tristeza. Embora não tenha entendido uma palavra, percebi que era um momento de muita dor, confirmada pelas lágrimas que escorreram pela farta barba branca.

Uma mulher da família que estava do meu lado rompeu em soluços. O Swamiji falou algumas palavras em tom firme, mas de efeito calmante. Abençoou uma caixa de doces que o homem trouxe, abençoou um manto brilhante que colocou em volta dele e pareceu dar algumas orientações no sentido de que tudo ficaria bem. Toda a família se ajoelhou em frente ao guru, um a um com a cabeça no chão em reverência.

Saí da cerimônia com o coração apertado, e fiquei andando pelos jardins de um lado para o outro. Uma mulher daquela mesma família se aproximou e me ofereceu um doce da caixa abençoada. E a aflição se foi.

P.s.: mais sobre o ashram, seus projetos e como ajudar no http://www.parmarth.com

P.s.2: aos interessados em saber mais sobre gurus, sugiro a leitura do livro Autobiografia de um Iogue. Se você é dos céticos, no mínimo é uma boa obra “ficcional” com temática oriental.


A semana em um ashram, sem rodeios

Vista da minha "solitária"

Vista da minha “solitária”

Desde que cheguei a Rishikesh, não fiz um amigo e vivo de olheiras fundas, mas há tempos não me sentia tão calma e satisfeita. Detalhe que me hospedei em um ashram considerado liberal, com regra de silêncio mais opcional que compulsória, sem a obrigação da seva (o trabalho voluntário), e com programação bastante flexível. Ou seja, se você quiser falar sem parar e faltar às atividades o problema é mais seu que deles. Mas aí, estar aqui deixa de fazer sentido.

Às 4h30, os badalos da Mangala Aarti tentam acordar os peregrinos (muitos deles indianos) para as primeiras preces do dia. Levantar da cama e encarar o vento frio que sopra entre os morros, ainda encobertos pela noite, é um trabalho diário de superação. Entre 5h e 5h30, o desafio é manter-se desperto com as orações musicadas em sânscrito. A variação mínima dos acordes do harmônio acaba criando um transe mental, e é preciso se policiar constantemente para não passar da concentração para o primeiro estágio do sono.

A terceira prova da madrugada também é daquelas: meia hora de palestra em hindi sobre questões espirituais. Embora seja muito interessante estar ali, só dá para entender os três primeiros oms e pescar algumas palavras como Krishna, samsara, darshan e yoga. Para os não iniciados, outra dificuldade é manter-se sentado no chão em posição de lótus por quase uma hora, com as pernas já dormentes.

A partir das 6h30, são duas horas de yoga e meditação. Embora o nível de dificuldade seja fácil, virar e desvirar o corpo com o cérebro ainda meio zonzo de sono, sem ter comido desde a noite anterior, é uma tarefa mais complexa que parece. O horário entre o café da manhã e a próxima aula (16h) é livre.

Às 17h30, todos os internos são esperados para o Ganga Aarti, a cerimônia de devoção ao rio. Os cantos e orações só terminam com a noite já instalada, quando o Swamiji nos recebe para uma série de perguntas e respostas sobre inquietações da alma. Depois do jantar, é hora de tentar dormir, pelo menos até a próxima madrugada.

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p.s.: a alimentação do ashram merece um parágrafo a parte. As três refeições diárias são totalmente vegetarianas (sem derivados do leite nem ovos) e naturais – ou seja, nada processado, frito ou com aditivos. A comida até agrada quem não é fresco, mas acaba ficando repetitiva. E é justamente nessa falta de graça que está uma lição interessante: a possibilidade de aniquilar a gula sem muito sofrimento. Você vai comer, feliz, porque seu corpo precisa daquilo, e não pela vontade desenfreada de sentir um gosto específico. O mais difícil é levar essa ideia libertadora para a vida real, com suas rotinas estressantes e fast foods.


Menino

Andava meio sem rumo pelas escadarias da parte oeste do Ganges, admirando como Deus foi generoso com esse pedacinho do planeta. Era fim de tarde, e a hora da cerimônia de devoção ao rio se aproximava. Justamente a deixa para crianças brotarem por todas as partes, oferecendo arranjos de flores montados em pequenas tigelas feitas com alguma folha resistente que lembra a de bananeira.

Depois de recusar várias ofertas, ele apareceu. Na bacia de metal que segurava com as mãozinhas encardidas, apresentava os arranjos mais feios da redondeza, com flores secas e carcomidas. Pedia o mesmo preço das outras crianças, 10 rúpias (cerca de R$ 0,40).

Era o mais maltrapilho dali. Estava sujo, com o shortinho jeans todo rasgado e pés descalços no chão imundo. Curiosamente, tinha os olhinhos mais brilhantes e a risadinha mais sincera. Mesmo com uma conversa limitada a “Ten rupees”, “No money” e “Yes, money”, veio seguindo ao meu lado por uns 20 minutos, dando pulinhos e tentando se comunicar em hindi vez ou outra.

Finalmente, a oferta final caiu para “Five rupees”, com os dedinhos de uma mão esticados. Eu disse o último “No money”, ele deu a última risadinha, e saiu em disparada para tentar a sorte com uma família indiana que passava por ali.

A cerimônia de devoção ao rio começou minutos depois. Me lembrei da minha família e dos meus amigos, muitos já com filhos tão amados e protegidos. Chorei copiosamente ao pensar no shortinho rasgado e nas flores carcomidas, sem entender o sentido de um mundo em que as crianças não foram feitas apenas para dar risinhos e pulinhos.


Um dia em um ashram hindu

O fim da tarde se aproxima na beira do Ganges. Em Rishikesh, mais de 200 quilômetros ao norte de Delhi, as águas recém saídas dos Himalaias passam cristalinas e caudalosas. Os internos do ashram se acomodam na parte de cima da escadaria que dá acesso ao rio, enquanto pessoas de todas as nacionalidades começam a chegar para o ritual diário de saudação ao Ganga. Para os indianos, ele é a manifestação da própria divindade.

Cheguei cedo e consegui um bom lugar, próximo à caixa de som e com visão panorâmica do rio, do por do sol e da cerimônia. Vestidos de laranja, os jovens do ashram entoam os primeiros versos do primeiro mantra, embalados pelos acordes hipnóticos do harmônio, pelo batuque aquoso da tabla e pelo leve timbre de sininhos.

A fogueira das ofertas é acesa, e os indianos se aproximam para participar mais ativamente da cerimônia, enquanto os estrangeiros se dividem entre tirar milhares de fotos e observar tudo atentamente. O sol se esconde entre a neblina das montanhas do outro lado do rio.

Já na segunda metade do Ganga Aarti, todos de pé: o guru do ashram aponta na escadaria. A presença magnética é reforçada pela vasta cabeleira e o manto laranja. O olhar dele cruza com o meu, e temo ter questões mundanas demais em mente quando ele passa rápido pelos meus pensamentos.

O Swamiji começa um novo mantra, e a voz firme e límpida preenche todo o espaço. Fechar os olhos e ouvi-lo entoando o Hare Krishna é sentir uma forte conexão com o universo, independentemente de crenças. Todas as religiões são bem vindas aqui, inclusive nenhuma delas.


Vigaristas de Delhi – check

Procurado

Procurado

Nunca achamos que vai acontecer com a gente. Porque né, já ouvimos, lemos e soubemos de tantas histórias que nossa mente não concebe cair nos famosos touts (vigaristas) de Delhi. Quase todas as pessoas que encontrei durante a viagem disseram que aconteceu com elas, mesmo já cientes de todos os truques. Mas gente, é possível isso? Sim, é possível.

A situação é tão bizarra que participamos quase que involuntariamente. Eu chegava do aeroporto para comprar um bilhete de trem na estação de Delhi nesta manhã, com destino a Rishikesh. Enquanto caminhava em direção ao prédio, vários motoristas de rickshaw diziam insistentemente e veementemente que não havia mais bilhetes para estrangeiros na estação, só no escritório oficial do governo da Índia. Não escutei e segui firme no meu objetivo.

Fui para a fila de informações da estação porque não consegui encontrar o escritório de turistas estrangeiros (que ficava justamente na entrada oposta à que eu estava). Um homem VESTIDO COM A ROUPA DOS FUNCIONÁRIOS da estação, IDENTIFICADO como funcionário da estação, e que estava ORGANIZANDO A FILA me avisou que ali turistas estrangeiros não conseguiam mais comprar bilhetes, só os nacionais indianos. Inclusive me mostrou o lugar onde “costumava ficar” o guichê para estrangeiros. Tudo muito verossímil, pois de fato só havia indianos ali.

Eu já sabia que os turistas têm uma cota especial de passagens, isso é fato. Também é fato que o escritório oficial do governo da Índia fica na tal praça que todos falavam, que é relativamente perto da estação. Aí que antes de perder mais tempo sem informações concretas, pedi um rickshaw para me levar direto ao escritório do governo indiano. Ele me levou, mas não para lá.

A cara de pau é tamanha que o lugarzinho se autodenomina oficialíssimo. Você começa a perguntar informações, e coincidentemente, todas as passagens estão vendidas e é preciso contratar um motorista para te levar na cidade que você quer. Falei que ia almoçar e não voltei mais.

Procurando o caminho para o escritório certo, um homem emparelha comigo na rua. Esbravejo contra as pessoas de má fé que importunam os turistas, e o senhor de cabelos tingidos de acaju me garante que vai mostrar a agência oficial. Olho para o lugar que ele aponta: ufa, a placa externa tem o mesmo endereço do escritório do governo. Mas adivinha? Pura engambelação. Troco umas palavras com o dono e saio bufando de raiva (literalmente) e xingando até a décima geração (mentalmente).

Ativo o 3G do celular, ligo o Google Maps. O escritório oficial ficava a poucos metros dali.

FIM.

p.s.: pergunto aos agentes oficiais (sim, eles existem) como é possível ter algo assim e as autoridades não tomarem conhecimento. Eles disseram que conhecimento até elas tomam, mas que as devidas providências ficam para as calendas devido àquele mesmo esquema que conhecemos no Brasil há tempos.

p.s.2: sim, havia passagens para hoje. E sim, é possível comprar bilhetes da cota de turistas na estação de Delhi. Basta entrar pelo Portão 1, que fica de frente ao bairro do Pahar Ganj, e ir direto para o primeiro andar, seguindo as placas para o International Tourist Bureau. Lembrem-se: é a entrada oposta de quem vem do metrô expresso do aeroporto, e dá uns 15 minutos de caminhada.


Contatos imediatos de primeiríssimo grau

Se tem uma coisa que estou adorando na Índia são as pessoas. Elas são naturalmente afetuosas, intensas e curiosas, especialmente em relação a estrangeiros. Adoram puxar papo, frequentemente pedem para tirar fotos com você, dão bebês no seu colo para segurar, te convidam para a casa deles (e o convite é verdadeiro, não como o nosso, que muitas vezes não significa nada).

Meu único dilema  é como diferenciar as aproximações bem intencionadas de um possível assédio, porque infelizmente você nunca sabe o que tanta afetuosidade quer dizer. Assim como no Brasil, pode ter jeitinho e esquema por trás de um sorriso “sincero”.

Com famílias, mulheres e crianças é tudo mais fácil, e essa interação vem rendendo ótimas experiências. Mas com homens fica sempre um ponto de interrogação. Por mais que você esteja com cara de poucos amigos – “Why are you angry?”, ouvi um dia na rua -, as abordagens aparecem e nunca sei como agir.

Já aconteceu de garotos puxarem assunto simplesmente porque adoram turistas. Já aconteceu de um estudante me acompanhar por 15 minutos na rua porque queria praticar inglês. Já aconteceu de homens insistirem na conversa porque queriam vender algo (isso você só descobre depois de 10 minutos). Já aconteceu de rapazes puxarem papo e pedirem fotos com você com objetivos desconhecidos.

Por via das dúvidas, acabo sendo meio rude, mas depois fico com peso na consciência pensando que poderiam ser boas pessoas. Enfim, parece que é a sina que vai me acompanhar pelo resto da viagem.


Um dia com os monges

Só soubemos que haveria uma cerimônia especial no monastério de Thikse um dia antes, avisados por dois viajantes que já haviam passado por lá. Decidimos mudar o cronograma e reservamos um dia inteiro para imersão no universo budista.

Casa de milhares de refugiados desde a invasão chinesa no Tibete, o Ladakh indiano é repleto de monastérios, encravados no alto de rochas com vistas deslumbrantes. Em Thikse não é diferente – muitos consideram o local uma réplica do monastério tibetano de Potala. Atualmente o lugar tem 80 monges e 20 pequenos futuros monges (o mais jovem com três anos e meio).

A cerimônia especial em questão é a destruição da mandala. Durante uma semana, os monges trabalham construindo lindas formas com areia colorida. Depois apagam o trabalho, simbolizando a efemeridade das coisas materiais. O evento ocorre apenas três vezes por ano, com três mandalas diferentes – cada uma delas representa uma entidade específica do budismo.

Devido ao início da baixa temporada e ao isolamento dos monges, que não fazem questão alguma de divulgar o acontecimento, menos de 10 turistas presenciaram o ritual. A destruição da mandala é precedida por várias cerimônias. Na primeira, realizada no pátio do monastério, um monge conduzia as rezas enquanto queimava ofertas. Bumbos, cornetas, pratos e trombones típicos finalizavam cada ciclo de orações em epifania.

A segunda cerimônia aconteceu dentro do templo. Sentados em tapetes no fundo da sala, nos sentimos integrados ao receber o mesmo chá de manteiga e biscoitos servidos aos monges. Mais uma vez, rezas e instrumentos que retumbavam na mente e no coração, elevando qualquer resquício de pensamento mundano.

A destruição da mandala veio em seguida. A dor no coração de ver um trabalho tão lindo virando pó, literalmente, logo passa quando internalizamos o sentido de tudo aquilo.  Seguimos ofegantes os ligeiríssimos monges escadaria abaixo até o rio. Na última cerimônia, lançamos na água o mix mágico de areia multicolor.

Um dia para ficar na memória. Para sempre.

Aqui o começo da destruição da mandala.


Tempero na veia

Paneer (tipo queijo minas) afogado em algum molho bem temperado e roti, o pão básico aqui.

Paneer (tipo queijo minas) afogado em algum molho bem temperado e roti, o pão básico aqui.

Atendendo a pedidos, vou falar o pouco que sei (e experimentei) da cozinha veramente indiana nesta semana.

Muitos aqui são vegetarianos, então a maioria dos lugares só oferece isso mesmo. Na categoria dos itens não vegetarianos mais comuns, estão ovo, frango e cordeiro. O leite é permitido a todos. Segundo me explicaram, o ovo é não vegetariano porque poderia virar um pintinho, então comê-lo significa interromper uma vida prematuramente.

Aqui é o lugar perfeito para investir no vegetarianismo, coisa que tentava fazer há séculos no Brasil sem muito sucesso. Tem muita variedade de vegetais, cereais, massas e derivados de leite – e muita variedade no preparo também. Carne de vaca ainda não encontrei. O fato de o animal ser sagrado no hinduísmo acaba criando um tabu sobre o assunto, mesmo para quem não segue a religião.

Como só visitei duas regiões, fica difícil fazer um panorama completo da culinária local, mas algumas coisas já são bem características. Primeiro, o reino completo dos temperos: vermelho, amarelo, verde, iogurte, molhos doces, etc (às vezes vem tudo misturado). Os pratos são uma overdose de cor, cheiro e sabor. Mesmo quando você pede alguma coisa ‘no spicy’, pode ter certeza que vai vir aquele curry básico. Acho que eles estão tão acostumados que o paladar já não identifica a força do tempero, que é servido normalmente no café da manhã com omeletes e batatas, por exemplo.

O pessoal aqui também gosta muito de fritura e tudo bem açucarado e colorido nos doces. Uma coisa que amo e tomo toda hora é o famoso chai (chá com leite e especiarias, para os não iniciados) que é maravilhoso sempre.

Entre as coisas parecidas com o Brasil estão o chicken tandoori (frango assado) e o rice/dal, que são o arroz com feijão (às vezes lentilha). O popular paneer é tipo um queijo minas, e também é fácil achar springrolls (rolinhos primavera) e o momo, um bolinho cozido recheado com vegetais que parece muito o guiozá japonês.

A boa notícia é que já estou aqui há uma semana e não passei mal – na verdade estou adorando tudo. Minha estratégia é comer em lugares recomendados pelos donos dos albergues e taxistas ou tentar achar algum lugar mais arrumado. Se nada funcionar na hora da fome, sempre levo bolachas, chocolates e snacks na mochila. Para não esquecer que estou na Índia mesmo no improviso, até a batata frita de saquinho que estamos acostumados no Brasil é sabor masala, daquela de escorrer uma lágrima do olho de tão temperada.