Festando debaixo d’água

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Fosse nos primórdios do mundo, Noé começaria a construir a barca ao ver o que se passa em Mianmar em meados de abril. Durante quatro dias, o país mergulha no festival budista que comemora a chegada do ano novo, o Thingyan, também conhecido como Water Festival. Não haveria nome mais apropriado.

O estado de euforia é igualzinho ao do nosso Carnaval, com a diferença de que lá tudo gira em torno dela, a água (cerveja, whisky e outras misturas alcóolicas como fortes coadjuvantes). Famílias e donos de negócios se posicionam nas calçadas com baldes, bacias, mangueiras e tinas enormes, obstinados em molhar quem quer que se aproxime. Alguns mais eufóricos usam mangueira de bombeiro mesmo. Armas e pistolas de água são um hit entre as crianças, as mais animadas da festa.

O Thingyan é uma festa móvel, pois o foco de atenção não está em um lugar específico, e sim em quem passa pela rua em motos ou pick-ups abarrotadas de gente (a pé só turista mesmo). Palcos e equipamentos de som super potentes brigam pela atenção da massa enlouquecida e encharcada. Nada mais vip que ter lugar nos camarotes elevados na calçada com direito a uma mangueira para chamar de sua.

Nas principais cidades, a balada começa por volta das 8h e vai até tarde da noite, com shows e apresentações locais. Exceto por barraquinhas e alguns restaurantes, tudo fecha durante o período, e a única forma de ir a algum lugar é de avião. As ruas ficam tão inundadas que as crianças conseguem nadar na água imunda que se acumula nos espaços entre as sarjetas. Em Mandalay, o enorme canal de onde sai a maior parte do suprimento baixa uns bons centímetros em apenas um dia.

Colocar o nariz fora do hotel para a mais simples tarefa significa encharque na certa. Sair da cidade? Não adianta. Cada lugar, cada vila, está no mesmo clima subaquático. Depois do terceiro dia, ocidentais se perguntam se eles não se cansam de fazer exatamente a mesma coisa por quatro dias seguidos. A resposta é não, não se cansam.

Quando ensaiava ficar de mau humor depois de horas ensopada, olhava aquelas carinhas alegres se divertindo como nunca a cada baldada em cheio na estrangeira e a rabugice ia embora. Não tem como não rir junto e se sentir privilagiada por estar ali naquele breve espaço de tempo. Para ficar seca, tenho toda a eternidade.

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Teste Mundolândia:

Se você 1) não gosta de ficar molhado; 2) tem nojo de colocar os pés e as canelas em água imunda; 3) tem um gosto musical refinado e odeia som alto; 4) não gosta de bêbados e de aglomerações humanas; 5) precisa se locomover por terra pelo país em curto espaço de tempo. R: Não venha para Mianmar durante o Tingyan (nem na semana anterior).

Se você 1) adora a ideia de se refrescar com água em um sol escaldante; 2) é paciente, tolerante e entusiasta da diversidade 3) gosta de ir a fundo na cultura local; 4) busca verdadeira interação com as pessoas do país visitado; 5) não tem problemas com calendário. R: Venha já levar sua baldada.


Estilo Mianmar: coisas a saber

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Vaidade

“Se o país ficou tanto tempo fechado, eles não devem ligar tanto para beleza”. Há! Espelhos por toda parte refletem looks e penteados caprichados em fios loiros e vermelhos (homens e mulheres), sem falar nas trancinhas afro com fitas neon embutidas. Ah, e os homens adoram usar saia comprida, o longyi.

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Thanaka até em propaganda publicitária de cerveja

Sorry, MAC

Nunca vi ou ouvi falar de thanaka até chegar em Mianmar, onde o negócio é praticamente um símbolo nacional. 99% da população feminina e de bebês (e parte considerável de homens e de garotos) exibe essa maquiagem natural  no rosto e no corpo, a cor amarelo-pálida destoando grosseiramente do tom da pele. Dizem que suaviza, esfolia e protege do sol.

Crepúsculo

Só não choquei muito porque já tinha visto na Índia, mas aqui tem muito mais. Primeiro você repara em alguém cuspindo sangue pela janela do ônibus. Conversando com um local, a boca do interlocutor está toda manchada de carmim estilo terror B. Antes de correr temendo tuberculose ou ataque vampiro, saiba que esse vermelho vem do consumo da noz bétel, usada como um refrescante bucal. Passam o dia, mehor dizendo, a vida, mascando isso. (Não tive coragem de pedir uma foto da boca vermelha, mas é isso aqui).

Estilo!

Estilo!

Punks

Ex-colônia inglesa, Mianmar tem uma surpreendente ala fiel às roupas escuras, maquiagem (rosto branco, olhos pretos) e cabelos espetados, zanzando de moto para cima e para baixo.

Gananstai

Se tem um cantor que venceu na vida, versão Mianmar, ele atende por Psy.Em um país com influências culturais externas quase nulas, Gangnam Style é tão viva e popular como se tivesse sido lançada ontem. As crianças não param de cantar, os adultos assoviam. Sabe o toque de celular? Ele. Sabe aqueles brinquedinhos musicais chatos de camelô ? Aperta o botão e adivinha o que sai.

Tinindo

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Curral aquático

Além do tempero da comida e do calor (humano e ambiente), Mianmar e Brasil têm mais em comum: o gosto pela água e pela limpeza. A principal tradição anual consiste em jogar água uns nos outros por quatro dias. Ribeirinhos passam o dia tomando banho (muitas vezes levam junto os animais). Ruas e calçadas são lavadas e varridas todo o tempo. Uma das formas de adorar Buda é jogando água em suas imagens. Carros e ônibus são enxaguados a cada parada na rodovia, além de passarem por uma limpeza completa quando chegam ao destino. Segundo explicaram, a superstição garante proteção na viagem.

20140422-140223.jpgAgachamento

Assim como os demais países do Sudeste Asiático, Mianmar tem uma gama infinita de bodeguinhas baratas e barracas improvisadas vendendo comida de rua. Mas o que chama atenção mesmo é o tamanho das cadeiras e mesas, dessas para criança brincar de casinha. O porquê, me pergunto até hoje.

*de última hora, mas não menos importante* Que qué isso? No restaurante, o som alto de um beijo estalado, desses que no Brasil seria cantada da pior espécie com olhada feia de repreensão. Em Mianmar, apenas o jeito tradicional de chamar a atenção do garçom. Mesmo na décima vez, causa espécie.


Sobrevoo

 

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Cruzar a fronteira em direção à Mianmar depois da overturística Tailândia foi um acontecimento. Apenas alguns passos de distância (entre Mae Sot e Myawaddy) para o ônibus vip luxo virar uma vanzinha calorenta com passageiros espremidos entre motos – quando não empoleirados no que apelidei de “pick-up gaiola”. Uma única ponte, e a estrada sem maiores sobressaltos se transformou em pista única congestionada onde só funciona um sentido por dia.

Enquanto me preparava para uma mochilada casca-dura (afinal, o país passou 50 anos ensimesmado em dificuldades internas), Mianmar deu uma pirueta e saiu dançando. Os estilhaços voando para todo lado não tornaram o ambiente duro, sujo ou feio, muito pelo contrário. A Mianmar para turistas é simples, mas limpa e bem cuidada. Inadimissível à primeira vista, só mesmo o calor: 22h, 40 graus em Mandalay (pausa entre 12h e 15h30 para não começar a alucinar no meio da rua).

A maioria budista se impõe na coleção de templos que transbordaria uma vida de visitas e preces. Tantos (mais de 2 mil apenas em Bagan) que muitos acabam abandonados, enquanto os mais famosos são fontes inesgotáveis de doações em dinheiro e metais preciosos. Também é enorme a quantidade de monges em mantos vinho, laranja e rosa zanzando por todos os lados. Cabeças raspadas, óculos escuros e motos, eis um combo cool.

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Em Mianmar se bebe muita cerveja e whisky, enquanto o tradicional bolinho doce frito (estilo o de chuva) é apreciado com uma mistura de café, chá preto e leite condensado. A comida, de tempero modesto para os padrões asiáticos, lembrou os refogados lá de casa. Tudo fecha entre 21h e 22h, mas os diálogos das adoradas novelas locais estilo pastelão explodem nos autofalantes dos ônibus interprovíncias até tarde da noite. A despeito da escalada pop da antiga Birmânia, hotel com ar condicionado sai a R$ 25, 10 horas de ônibus confortável a R$ 14, um prato de comida a R$ 4.

Meu maior exercício mental era tentar imaginar aquelas pessoas simples, alegres e honestas, tão amigáveis, envolvidas em algum tipo de conflito violento onde meus olhos não conseguiam ver. Porque nossa interação era sempre um sorriso, sempre um “hellooooo” gritado de onde quer que seja. Pareciam felizes por receber visitas depois de tanto tempo. “Are you happy?”, perguntavam, na esperança de que compartilhássemos do mesmo sentimento.

Uma vez, o chinelo de um amigo arrebentou a correia durante um passeio. O homem do lado tirou as sandálias que estava usando para oferecer.

<3 (da sumida Mundolândia Productions)


Mianmar, breve introdução

Vila em Singaing, próxima a Mandalay

O bom de a viagem acontecer só agora é que, fosse há cinco anos, Mianmar estaria fora da lista. Depois da independencia dos ingleses em 1948 e breve período de governo civil, os militares chegaram ao poder em 1962 e fizeram uma série de intervenções pouco afeitas ao espírito democrático e ao desenvolvimento do país. Lá estão meio que até agora – mas pelo menos sob a alcunha civil após eleições convocadas em 2010 e aparente processo de pacificação e de abertura política.

Hoje Mianmar é indiscutivelmente um destino turístico (1 milhão de visitantes por ano, segundo orgãos oficiais), mas longe considerar que tudo reine na mais santa paz. Um amigo recém-egresso de um programa humanitário em Rakhine, no noroeste, conta que o conflito entre budistas e muçulmanos deixou centenas de mortos e milhares de desabrigados em três anos. Em outubro último, um atentado a bomba no quarto de famoso hotel em Yangon deixou uma americana ferida. O motorista do taxi avisa que, em uma cidade próxima dali, a “briga” está feia. Passagens de onibus entre Mandalay e a fronteira com a Tailandia em Tachileik são altamente desaconselhadas por agentes de turismo – “dangerous, not good”.

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Tarde de domingo em Yangon

Sinceramente? Na bolha dos destinos turísticos evidentemente bombados pelo governo e pelas agências locais (estive em Yangon, Mandalay e arredores, Pyin Oo Lwin, Inle Lake, Bagan, Hpa-An) nenhum resquício aparente de animosidade. Aos olhos dos turistas, Mianmar está mais para queridinha entre os países exóticos-intocados que para um destino perigoso a ser evitado.

Intocado, pero no mucho. Blogs que alertavam para falta de ATMs e internet no ano passado já estão ultrapassados, e a quantidade de lojinhas com souvenirs impressiona. Os preços sobem na mesma proporção da lotação dos hotéis, enquanto investidores fazem pipocar resorts aqui e ali. Carros caríssimos dos modelos recém-lançados dividem a rua com carroças, todo mundo de celular na mão.

Hotelão em Yangon

Hotelão em Yangon

Não fomos poucos os mochileiros que comparamos Mianmar com o que deveria ser a Tailândia de 30, 40 anos atrás, a estrutura meio capenga compensada com folga pela simpatia e hospitalidade genuinamente sentidas em cada troca com os locais. O duro é pressentir que essa realidade deva sucumbir à avalanche de turistas que prometem chegar nos próximos anos, atraídos justamente pela rusticidade e relativa ausência de turistas por ali. Paradoxo complicado de resolver.

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p.s.: essa série  de posts está sendo escrita após a temporada em Mianmar, já de volta a Bangkok. Peço desculpas pelo longo sumiço, mas lá as coisas foram meio corridas; o notebook morreu; a internet existe, mas ainda é lenta; e, diferentemente dos outros países, eu não tinha um SIM local com internet para o celular. E ainda corro sério risco de perder as fotos e vídeos dos últimos seis meses de viagem que estavam no falecido HD, sem backup. Quer dizer.

p.s.2: olha o mapa da viagem atualizado aqui, gente!

 

 

 

 


Quiz do domingão

Hoje teve mais um daqueles eternos debates sobre a situação socioeconômica dos países do mochilão. Depois de reiterar que o Brasil não está tão distante dessas realidades, veio o desafio: “Então veja lá o IDH”.

A fórmula de cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano, usado pela Organização das Nações Unidas desde a década de 1990,  não é unânime entre estudiosos. Mas não deixa de ser uma régua para os 186 países analisados – e adoramos uma lista, vai.

Divido o quiz com vocês para embalar esse domingão preguiçoso de sol escaldante. Façam suas apostas (respostas depois do mapa).

Destinos, pela ordem: Índia, Sri Lanka, Maldivas, Nepal, Butão, Tailândia, Mianmar, Laos, Camboja, Vietnã, Malásia, Cingapura, Indonésia, Filipinas, China, Mongólia.

(Reprodução IDH 2012 UOL)

(Reprodução IDH 2012 UOL)

Posição dos países no ranking: 13º Hong Kong (China); 18º Cingapura; 64º Malásia; 85º Brasil; 92º Sri Lanka; 101º China; 103º Tailândia; 104º Maldivas; 108º Mongólia; 114º Filipinas; 121º Indonésia; 127º Vietnã; 136º Índia; 138º Laos e Camboja; 140º Butão; 149º Mianmar; 157º Nepal.


Sudeste Asiático express

Hoje não vou falar de ir para o outro lado do mundo, e sim de aproveitar quando o outro lado do mundo vem até nós. Porque nem sempre é preciso colocar uma mochila nas costas e torrar um dinheirão para conhecer um pouco mais de culturas tão incríveis.

Muitos críticos consideram a cozinha vietnamita a melhor do mundo. (Goodmami / Creative Commons)

Muitos críticos consideram a cozinha vietnamita a melhor do mundo. (Goodmami / Creative Commons)

No próximo dia 14 de setembro (sábado), sete dos 10 países que formam a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês) vão fazer um festival gastronômico e cultural em Brasília em comemoração ao 46º aniversário da entidade. As portas da Embaixada das Filipinas estarão abertas entre 11h e 15h30 para apresentações culturais, jogos e comidas típicas, com entrada gratuita.

Todos os sete países que participam do evento estão na minha rota de viagem: Cingapura, Indonésia, Malásia, Mianmar, Filipinas, Tailândia e Vietnã.  Mesmo antes de chegar lá, posso dizer que as pessoas com quem já tive contato são das mais hospitaleiras e simpáticas (e a comida do Sudeste Asiático, bom, é um capítulo a parte de boas surpresas).

A Asean foi criada em 1967 com o objetivo de acelerar o crescimento econômico dos países membros e para promover paz, estabilidade e colaboração em diversas áreas. Atualmente, além dos sete países já citados, também é formada por Brunei, Laos e Camboja, que não vão participar da festança porque não têm representação diplomática em Brasília.

A Embaixada das Filipinas fica no Setor de Embaixadas Norte, Lote 1 (perto do Iate Clube).