Mundopress

A Mundolândia estampa neste mês as páginas da super caprichada Revista Très, de Presidente Prudente (SP). Lembram de Goa, na Índia? Eles também querem ficar por lá!


Índia acaba aqui

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Nada mais bonito que o fim.

Parece que só com data limite conseguimos aproveitar as coisas intensamente, como deveria ser tudo na vida. Buscando as imagens que ilustram este post, tenho certeza de que assim foi minha passagem pela Índia, 31 destinos e mais de 10 mil quilômetros depois.

Só hoje, há dois dias longe do país que foi minha casa pelos últimos três meses, apareço para avisar que já estou no Sri Lanka. Dado o sumiço dos últimos tempos, preciso contar que as festas de fim de ano em Kerala foram regadas a sentimentalismo letárgico, daqueles que fingem ignorar o inadiável. Mas o avião não tem tempo para pieguices e cá estou na capital do antigo reino Ceilão, essa indiazinha-mini, desde o dia 3 de janeiro.

Muito antes de qualquer roteiro, sempre soube que precisava começar a viagem pela Índia. Eu, que passo longe do estilão camiseta de OM / yoga / incenso e que derrapo a passos largos no caminho da espiritualidade. Muitas vezes me perguntaram se a jornada saía como planejado, e eu resumia com um “sim” ponta de iceberg. Completo agora que não foram poucas as vezes que chorei de emoção.

As gentes (ah, as gentes), os perrengues, as fés, os caminhos, os lugares, as novidades, tudo em absurdas ondas de informação, desbastaram minha casca e entranharam em infusão pelos poros, até que virei uma pessoa diferente. Não sei se melhor ou pior, se mais calma ou mais intensa, se com menos respostas ou mais perguntas.

Ou de repente tudo isso junto em um delicioso paradoxo harmônico, como a Índia ensina tão bem.

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p.s.: a partir de hoje, o link com o mapinha interativo está fixo na seção Roteiro. Mais fácil, né?


Meu surpreendente natal indiano

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Ao contrário do que pensam os leitores, meu natal na Índia foi cheio de Jesuses, presépios e papais noeis. O rebuliço em torno do aniversariante foi tanto que até ceia teve – tudo bem que acabou às 22h30, mas né, o importante é confraternizar.

“E os deuses azuis cheios de braços? E os deuses macacos? Como assim Jesus?”, pergunta você, já sem entender nada.

Embora o hinduísmo prevaleça entre mais de 80% da população, a Índia abraça calorosamente inúmeras religiões – a convivência é tão harmônica que não é raro encontrar Jesus dividindo altar com Shiva (azul) e Hanuman (macaco), especialmente no sul do país. Em Cochin, antiga colônia portuguesa onde estive nos últimos dias, uma significativa comunidade católica preserva costumes como a representação do auto de natal com as crianças da catequese e a missa do galo, uma fofura só.

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Não sabia muito bem dos detalhes até chegar lá e me refestelar na hospitalidade natalina local. Mais uma vez aquela sensação boa de estar em casa, mas dessa vez em casa mesmo: me hospedei na residência de uma querida família católica de pai, mãe e duas pequenas mocinhas. Estar no sofá da sala com eles ao som de um DVD de disco music natalina, enquanto saboreava os deliciosos bolo e vinho natalinos preparados pela matriarca, foi muito mais que esperava esse já amarfanhado coração mochileiro.

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Nas ruas, cada venda, cada corrida de tuk tuk, cada conversa ininteligível entre os locais, era encerrada com votos de happy christmas. Intrigada com a quantidade de cristãos, pergunto se o rapaz que acabou de fazer votos é católico. Diz que é muçulmano, mas saca um colar de crucifixo de dentro da camiseta. Me surpreendi ao descobrir que a antiga sinagoga estava fechada em homenagem ao aniversariante dissidente. No mural perto dos pescadores, Shiva e Jesus posavam lindos para a pintura.

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p.s.: Cochin em si é um cidadão com mais de 600 mil habitantes, mas um pedacinho dela, Fort Cochin, mantém o clima de vila pequena com cheirinho de maresia. Mesmo sem praia frequentável, o mar atrai atenções com os pescadores equilibristas que operam antigas engenhocas de freios e contrapesos – um interessante contraste com os cargueiros enormes que vão e vem de um dos portos mais movimentados da Índia.

p.s.2: aproveitando o ensejo, boas festas a todos!


Goa, onde quase fiquei

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Goa é um lugar tão especial que fica difícil explicar assim, sem uma tosca metáfora culinária. Pegue uma panela e misture Índia, Portugal e Rússia, com uma pitada de turistas da Europa e da Austrália. No recheio, adicione resquícios do que um dia foi o paraíso hippie e hoje está salpicado de resorts e pousadas boutique, muito embora o lugar mantenha o ar despretensioso embalado pelo jeitão desencanado dos locais. Essa é Goa, pronta para servir.

Acho que o território começou a se desprender seriamente do padrão Índia com a chegada do portugueses no Século 15. Os lusitanos deixaram ali um clima easy going parecidíssimo com o do lugar que descobriram “por engano” séculos atrás, no caso o Brasil. Justamente quando tentavam alcançar as Índias, vejam só.

Nenhum goense pede para tirar foto, ninguém liga se a russa está fazendo top less na praia, e o consumo de álcool é o mais liberado e barato da Índia. O ônibus que leva os trabalhadores para cima e para baixo parece uma balada ambulante, o som bombando o dia todo. Goa lembra demais a Bahia histórica das igrejinhas caiadas, de natureza deslumbrante e bafo úmido que dão vontade de não ter vontade de nada, só preguiçar pelo resto da existência.

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Depois de dois meses viajando pela confusão linguística que é a Índia, chegar pela empresa Paulo Travels, ser recebida pelo atendente Antonio Fernandes que me oferece o jornal O Heraldo, e logo mais caminhar pelo Convento Santa Mônica, tudo ali escritinho com nossa língua pátria, dão a sensação deliciosa de estar em uma filial de casa do outro lado do mundo.

Pena que o português falado tenha se perdido nas gerações antigas, mas Jesus, ah, esse ainda é o rei dos corações goenses, com altares e crucifixos espalhados por toda parte piscando luzes móveis coloridas. Quase comecei a rezar junto quando a tiazinha do ônibus sacou um rosário da bolsa.

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Muito embora os preços estejam altos para o padrão Índia, ainda é possível encontrar long necks geladas a 1 real e hospedagem por pouco mais de 10 reais a diária. Águas mornas e calmas, praias cercadas por coqueiros majestosos e pôr do sol no mar, isso aí tudo por conta da casa.

Não são poucos os relatos de gente que veio passar uma semana e ficou, o que achava coisa de doidão podiscrê. Ali descobri que o risco é real.


Balada indiana, mas não

Para quem achava que este blog estava sacro demais, finalmente algo profano sobre a Índia. Ou sobre Goa, a não India. Trata-se do primeiro escape depois de dois meses de peregrinação introspectiva, em uma madrugada notória com os russos. Sim, os russos.

Em algum tempo indeterminado nas últimas décadas eles descobriram a Bahia indiana e hoje mandam por aqui, acelerando suas scooters para cima e para baixo com os cabelos loiros platinados ao vento. Se esparramam pela areia em trajes mínimos – às vezes nenhum traje, o que pouco importa desde que contiuem jorrando rublos. Aqui todos os comerciantes e ambulantes falam russo, e os cardápios estão em russo. A balada, dos russos também.

Não sabia dessa última parte até chegar lá, o paraíso dos fanfarrões do norte. Mulheres não pagavam e podiam beber de graça a noite toda, homens o mesmo desembolsando 32 reais.

Enfileirados na estradinha para o incrível casarão a céu aberto emanando laser e música eletrônica, carros ansiosos se amontoavam. Enfileirados no bar, homens berravam a língua já enrolada por natureza, virando copo atrás de copo, os gestos desmedidos derrubando álcool por toda parte.

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Mulheres frenéticas na pista exibiam vestidos colados, ressaltando o bronzeado recém adquirido. Logo menos, homens de cueca pulavam na piscina, seguidos pelas australianas, que definitivamente não ficam atrás. Como diria o inglês que tentava seguir o ritmo, “they are party monsters”.

O clima festivo a la Rússia atropelou os poucos indianos que encontrei, muito embora eles mesmos, provavelmente, estejam perdidos por ali até agora. Um casal local virando os olhos tentava se manter de pé. Outros, maravilhados com o flash de liberdade sem freios, tentavam a sorte com russas cambaleantes no fim da festa.

Isso também é a Índia, afinal.


Mumbai, a cidade

Mumbai surgiu como uma bomba de bafo úmido quando eu ainda estava meio sonolenta, depois de um voo de madrugada vindo de Calcutá. O trânsito héctico e o forte cheiro de peixe revolveram os sentidos. Não acreditei quando vi a espelunca onde iria me hospedar, perto do porto e da vila de pescadores, o lugar mais caro até aqui.

Mas a cidade não tem culpa dos meus padrões desajustados com o seu jeitão, diferente de tudo que vivi nesses dois meses. Capital financeira da Índia, é uma mistura de Salvador com Rio de Janeiro, mas sem a violência. Invejei os mumbaikars ao descobrir que sábado a noite é dia de levar a família ou a namorada para passear nas praias e na orla, sem o risco de levar um tiro na cara.

Casais jovenzinhos no maior <3 (Marine Lines, Mumbai)

Casais jovenzinhos no maior <3 (Marine Lines, Mumbai)

O tour pela favela instalada no coração da cidade não explora a miséria, mas fala com orgulho sobre os moradores que produzem milhões com reciclagem de lixo, manufatura de produtos em couro e artesanato com barro.

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O guia explica rindo que, todos os dias, entre seis e oito pessoas se acidentam ao cair do trem suburbano superlotado. “Mas as autoridades não fazem nada?”, “Sim, eles param o trem”. A poucos quilômetros, uma loja instalada entre dois terrenos de lixo vende roupas de R$ 3 mil para jovens indianas modernetes empunhando Iphones e cigarros.

Mumbai é a única cidade da Índia onde o taxímetro funciona, onde encontrei duas mulheres locais bebendo cerveja em um bar, e outras duas no trem trajando shortinhos jeans. Mas não se engane, porque praia é lugar de ficar de roupa comprida sob um sol escaldante, e onde o mar é mero coadjuvante para um domingo feliz entre amigos e família farofando na areia.

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O jornal avisa sobre o risco de atentado a bomba em lugares movimentados e sobre a apresentação do top DJ sueco, aquele preferido pela família Estevão. O show acontece a poucos metros da maior lavanderia a céu aberto do mundo. Ingressos a 200 reais, mesma renda mensal das famílias que ensaboam, enxáguam e torcem Mumbai, quando tanto. Brasil, é você?

Se a sua ideia sobre a cidade se resume a Quem quer ser um milionário?, compre um tíquete e venha ver por si mesmo.


Vamos embora para Calcutá?

Kumartuli, o bairro dos escultores

Kumartuli, o bairro dos escultores

Cheguei a Calcutá tensa.

Todas as informações que tinha até então eram encapadas em papel de qualidade duvidosa. Ruas lotadas e sufocantes, pobreza indigesta, dificuldade para mulheres sozinhas… Enfim, uma cidade difícil. “Apesar de toda minha experiência, me senti como uma novata em Calcutá. Me senti vulnerável, fora do meu eixo”, disse a blogueira canadense que viajou a convite do escritório de turismo local. Mas aqui comigo, uma informação destoava: Calcutá é conhecida como celeiro artístico de alta qualidade na Índia. E essas flores raras não aparecem assim, em qualquer ambiente.

Fato é que, enquanto estive lá, me perguntei todos os dias se realmente tinha descido no lugar certo.

Pela primeira vez, andei normalmente pelas ruas sem sentir todos os olhares em mim. A cidade tem um ritmo diferente, rápido, mas não frenético, alegre, mas não carnavalescamente turístico. As mulheres andam decididas e falam de igual para igual com os homens. Camelôs vendem livros em mantas estendidas no chão. Estudantes e trabalhadores, de óculos e pastinhas, pipocam por todos os lados. As crianças continuam te cumprimentando com risadinhas e os típicos gritinhos de “hello”, mas jamais vão parar a interessante brincadeira do momento para ficar na sua volta. Se eu tivesse que  resumir o clima de Calcutá em uma frase, diria que ali cada um cuida da sua vida.

E a cidade sufocante? Tirando alguns pontos de maior aglomeração, as ruas são até bem tranquilas (flashs de Calcutá no Flickr aqui do lado).  E a pobreza contundente? Está lá, mas nada diferente do estilão Índia. Aliás, no lugar de gente pedindo dinheiro em toda parte, o que vi foi cada um tentando se virar da sua forma, com birosquinhas montadas nas calçadas vendendo de conserto de instrumentos a fritada chinesa.

Fascinada pelo clima local, abandonei o ímpeto turistona e tirei os dias para vagar pelos bairros – queria a foto mais ampla que Calcutá e seus 4,5 milhões de habitantes poderiam me dar em apenas três dias. O desafio era usar o metrô e o trem para descer em pontos randômicos, sem um plano definido. E a cada nova estação, o reforço de que a cidade me ganhou por inteiro.

*****

ps: historinha de Calcutá – depois de muito procurar, achei uma banquinha simplória na rua que vendia pinça. Além de não superfaturar o preço do produto, coisa meio rara por aqui quando se trata de turistas, o homem recusou veementemente ficar com o troco de menos de 8 centavos de real. Não adiantou insistir: recebi duas rúpias de volta junto com um sorriso.


Meu encontro com Madre Teresa

Não tenho religião – ou como descobri nos últimos tempos, tenho todas elas. Então foi como turista, e não como devota, que quis visitar a casa de Madre Teresa, figura tão intrinsecamente ligada a Calcutá que a cidade virou seu sobrenome.

A história conta que o extremo leste da Índia foi um dos lugares mais abalados com os desdobramentos da independência indiana na década de 1940. Desarranjos políticos, religiosos e econômicos trouxeram à Calcutá milhares de miseráveis, esqueletos sem nome que morriam amontoados nas ruas (as fotos da época são o horror da vergonha a que chegamos como raça humana). Foi nesse contexto que a então enclausurada Irmã Teresa sentiu o chamado divino para sair às ruas e levar amor a quem já não temia sequer a morte, pois o inferno era ali mesmo.

A história também conta que ela não era uma figura unânime, mas confesso que fiquei com preguiça de procurar os defeitos da mulher que desembarcou sozinha em um dos cenários mais dantescos do mundo buscando fazer alguma diferença. Que morava em um quartinho minúsculo e abafado em cima da cozinha e nunca pediu sequer um ventilador. Que abriu centenas de casas aos desamparados e trabalhou até os 87 anos, já muito doente, sem esperar fortunas, promoções e férias em resorts no final do ano.

Mas foi sem saber de tudo isso que cheguei à casa. Também não sabia que ainda faltava meia hora para o horário de visitação, e já me preparava para esperar quando uma mulher se aproximou amparando um senhor de muletas, com uma prótese tosca no lugar da perna. Ela sorriu e me chamou para entrar com ela. Foi me levando pelo braço por dentro do convento até uma salinha meio escura, as luzes ainda apagadas. Por algum motivo, fui contemplada com meia hora sozinha junto ao túmulo de Madre Teresa, um dos pontos mais visitados da cidade.

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Assim que cheguei aos pés da caixa branca de pedra, uma grande emoção me colocou de joelhos e as lágrimas brotaram sem parar. Justamente eu, que até ali sabia pouco além do nome turbinado pelo Nobel da Paz de 1979. Fui invadida pelas visões e sentimentos que resultaram em uma vida dedicada aos indesejados, e a experiência foi tão comovente quanto aterradora. Afinal, a responsabilidade pelo que está acontecendo é de todos nós.

“Eu vi uma multidão muito grande com todos os tipos de pessoas, muito pobres, e havia crianças também. Todos eles tinham as mãos levantadas para mim, que estava de pé no meio deles”, diz a Madre, sobre um de seus chamados, no quadro pendurado na parede. É a cena que vejo na Índia todos os dias, e a lembrança das imagens traz uma nova descarga emocional.

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Antes de sair da sala, deixei uma oração na caixinha ao lado do túmulo. Pedi ajuda para que aquele meu sofrimento individual, meio inútil no contexto das coisas terrenas, seja transformado em ações concretas nos momentos certos. E que a perturbação pelo sofrimento do próximo nunca esmoreça. Acho que pedi para a pessoa certa.


Questão de lógica

(andando pelas ruas de um vilarejo de Bodhgaya, onde Buda obteve a
iluminação suprema).

– Oi!
– Oi!
– Me dá dinheiro?
– Desculpe, não posso, rapazinho.
– Por quê?
– Porque se eu fosse dar dinheiro para todas as pessoas que me pediram hoje, não sobrava nada.
– Mas me dá dinheiro?
– Ei, não é assim que funciona. Se eu te pedir dinheiro, você me dá?
– Não.
– Então porque se você me pedir eu tenho que dar?
– Porque você tem dinheiro.
– E porque eu tenho?
– Porque sim.
– Porque sim não! Porque eu trabalhei. Dinheiro não é assim, você pede e alguém dá. Tem que trabalhar por ele. E olha, ficar pedindo dinheiro para os outros na rua não é nada bonito no meu país, viu? Bonito é conseguir as coisas com o próprio esforço.
– Entendi.

(silencio de um minuto)

– Então me dá seu IPhone?


O que vi em Varanasi?

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Olhando pela janela do trem, a cidade fica para trás mas se mantém viva na memória dos últimos dias e dos próximos anos.

Talvez pela energia especial que os hindus depositem neste lugar, um dos mais sagrados da Índia. Segundo consta, Varanasi foi fundada pelo próprio deus Shiva, o destruidor. A ligação religiosa é lembrada pela presença chamativa dos sadhus, vagando pelas ruas com trajes laranjas e rostos decorados com pó de cinzas e tridentes vermelhos (símbolo de Shiva). Considerados homens santos, eles abdicaram dos bens materiais para impulsionar o desapego desse mundo e a conexão com o próximo*.

Em Varanasi, cidade auspiciosa para se morrer segundo o hinduismo, vi cadáveres em chamas na beira do Ganges, rijos como espantalhos quando cutucados para queimarem mais rápido. Vi corpos embalados em papel laminado, acomodados no chão em meio às cabras que comiam as flores fúnebres sem cerimônia, esperando a vez de ir para as fogueiras que nunca se apagam. Pela primeira vez vi as castas a olho nu, cada uma se consumindo no seu lugar. E os ossos grandes que não queimam, esses são jogados no rio. “Os peixes comem”, riu o homem. Aliás, ninguém ali chora, pois o homem disse que chorar atrapalha a alma que se foi. E achei que teria cheiro de churrasco, mas só cheira a madeira queimada mesmo.

Também foi em Varanasi que vi o Ganges como microcosmo de uma pequena cidade, funcionando manco de uma margem só. Lixo, vendedores que falam qualquer língua para empurrar mercadoria, pescadores, barqueiros, cachorros sarnentos, peregrinos se banhando, lavadores de roupa, cozinheiros, esgoto, artesãos, vacas encrencando com búfalos, cobras, cabras, corpos queimando, meninos empinando pipa, meninos tentando rebater um pedaço de pau na falta de uma bola, miseráveis reunindo cocô para usar como combustível, varais enormes, roupas recém lavadas estendidas no chão imundo, cerimônias religiosas tão ensaiadas que pareciam apenas coreografia.   

Em Varanasi assisti ao meu primeiro concerto de música indiana em uma salinha de teto baixo inversamente proporcional à virtuose dos instrumentistas. Só não entendi porque o festival era dedicado a George Harrison, mas o importante é que o beatle appeal funcionou com a turistada.

No caminho para a estação de trem, Raju, o motorista do rickshaw a pedaladas, disse ter muitos amigos. Não satisfeito com o “good” meio morno, sacou uma agendinha com depoimentos de dezenas de clientes satisfeitos desde 2005, um impressionante TripAdvisor pessoal improvisado. Mais impressionante ainda a quantidade de vezes que a expressão “only honest driver in town” aparecia nas páginas amareladas.

Em Varanasi me senti uma pequena peça do estranho quebra cabeça existencial, esperando a hora de me encaixar em algum lugar.

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* Para o documentário Sadhu, o diretor Gaël Métroz acompanhou a saga tortuosa de um peregrino por vários meses, com cenas em Varanasi. Dois minutos de trailer aqui.