O último paraíso

Foi sem muitas expectativas que desembarquei em Koh Lipe. Nova queridinha da Tailândia, a ilha integra o parque nacional Tarutao, quase na fronteira sul com a Malásia. Os livros falavam de um paraíso crescendo rápido, estilo “melhor correr agora antes que kohphiphize”. Depois de duas horas buscando pouso barato nas praias anoitecidas, senti a previsão tomar forma nos preços já inflados. Os 14 quilos de mochila me fizeram acordar só na manhã seguinte.

A partir de então, a inesquecível Koh Lipe mostrou a que veio. A ilha é rodeada por um mar turquesa padrão Maldivas e por outras ilhas semi-intocadas em verde rochoso. Durante as primeiras horas do dia, a maré alta convida para um banho na piscinona cristalina sem ondas, recomendado no intervalo entre horas de preguiça na areia branca. Quanto às praias, livre escolha entre as grandes mais conhecidas e as pequeninas quase vazias. A água é tão calma que dá para pular de uma para outra contornando as pedras.

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Mas a melhor parte vem quando o mar fica imprestável para banho (!). No fim de tarde, quando a maré retrai, os corais ficam tão próximos da superfície que a sensação é de estar em um grande aquário ao ar livre. É possível caminhar entre uma formação e outra, e nem precisa de snorkel para detectar peixes e cores passando bem pertinho das pernas e dos pés. A água fica absurdamente cristalina e a boca absurdamente aberta com tamanho capricho da natureza (a foto da família Nemo aí embaixo foi tirada de fora da água).

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No pôr do sol, experimente pular a óbvia Sunset Beach e vá para o meio do mar, no banco de areia formado entre Koh Lipe e a vizinha Koh Adang. Foi dali que, semi-deitada na água morna, vi a bola laranja cair na covinha formada entre uma ilha e outra. O céu enorme passou do azul para o quase vermelho, incluindo nuances de amarelo, laranja, rosa e púrpura que também tingiam a água. Na praia, famílias tailandesas batiam palmas e soltavam “ohs”, enquanto ocidentais em contemplação não ousavam se mexer.

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Embora passe por mudança rápida e aparentemente irreversível (área verde bastante devastada, um certo lixo irritante nas praias), Koh Lipe ainda se mantém com folga no status paraíso cinco estrelas. Os barcos e as massas de gente, por ora, não são suficientes para tirar o sossego e o brilho nos olhos de quem vem.

Resumindo, corra.

p.s. bônus: pequena na medida certa para ser explorada a pé, é fácil encontrar outros viajantes independentes que se juntam para celebrar os dias e noites mais interessantes e menos óbvios até aqui.

p.s.2: a partir de hoje encerro meu ciclo na Tailândia sul (vulgo ilhas e praias) e dou um tempo no país para passar algumas semanas na inexplorada Mianmar. Depois volto para finalizar o norte da Tailândia, seguindo para Laos, Camboja e Vietnã, nessa ordem.

p.s.3: perdido no mapa? Siga o passo a passo da viagem aqui!


A ilha dos indecisos

Uma coisa que a Tailândia vem ensinando: muita oferta de lazer também pode estressar um viajante mochileiro. Com mais de 700 ilhas e sabe-se lá quantas praias, escolher a próxima parada virou uma angústia cotidiana. As coisas vão mudando rápido, os guias ficam desatualizados e os preços de locomoção/hospedagem chegam a ser proibitivos em alguns destinos (padrões mochileiros, claro).

Escolha certeira para os amantes do mergulho, a costa fica complicada para quem não tem condições físicas/psicológicas de passar dias embarcado pulando de ilha em ilha. Aí tem as daytrips tumultuadas e caras, ou a opção de escolher um lugar sem saber direito como serão as condições de hospedagem. Praia/ilha muito cheias não é bom, muito vazias também não. Por fim, a tentativa de acertar o estilão de público que agrade.

Estava em um desses dias confusos quando esbarrei nesta matéria. A descrição de Koh Lanta fez sentido: “Melhor para: quando você não consegue se decidir”.
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Com mais de 30 quilômetros de alto a baixo, dizem que começou a ser frequentada por hippies na década de 1980 e que a energia elétrica chegou só em 1996. Mas como disse lá em cima, esqueça esse cenário inexplorado porque tudo mudou (muito embora grande parte da ilha ainda fique desativada na baixa estação, entre maio e outubro).

Hoje Koh Lanta é uma mistura de praias que variam do turistão ao quase deserto (sentido norte-sul), passando por resorts arrumados, bangalôs quero-ser-chique e quartos-palafitas.
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O público é um liquidificador: casais em lua-de-mel, famílias com adolescentes, famílias com pequenos, idosos tradicionais, ex-hippies, mochileiros jovens. É meio estranho ver crianças brincando com cachorros perto de placas que anunciam happy joint/banglassi/happy brownie, mas faz sentido no contexto.

Se o público parece diversificado, mais interessante ainda é a composição local. Destoando de todas as ilhas visitadas até então, a maioria é muçulmana (80%, segundo um site de lá). Só que também tem os budistas, a antiga vila com forte acento chinês e a outra de ciganos do mar.
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Koh Lanta tem um monte de lojas, restaurantes e terrenos para venda ou em construção, mas também uma reserva ecológica enorme, elefantes e praias com acesso semi-escondido. Não é exatamente paradisíaca, mas tem um não-sei-quê de charme. Depois de Bangkok, foi o único lugar onde me senti menos turista.

p.s.: ideal para motociclistas.


A dois (irredutíveis) passos

 

Barcos curtem um mar turquesa enquanto o pessoal observa do lado de fora

Barcos curtem um mar turquesa enquanto o pessoal observa do lado de fora

No filme A Praia, um dos personagens afirma que, se existe um lugar intocado na Terra, basta aparecer no Lonely Planet para tudo se perder. Ironicamente, não foi o infame guia, e sim a própria produção hollywoodiana que selou o destino do paraíso em pane conhecido por Koh Phi Phi.

Não fosse a película, nem festeiros do mundo todo e seus buckets, nem barulhentas famílias tailandesas em daytrips, nem idosos ocidentais endinheirados, dariam tanta atenção ao tesouro escondido no lado tailandês do Mar de Andaman. Mas bastou Leonardo Di Caprio aparecer e pronto, fez se a sanha mercenário-hedonista em torno do nome que personificou a praia perfeita narrada no livro de Alex Garland. E lá se vão 14 anos de carga pesada, tsunami devastador (2004) incluso.

A duas horas de ferry e 45 minutos de lancha do continente, as formações rochosas calcárias plantadas no oceano vão surgindo em nítido estourado como uma montagem em chroma-key. Zumbindo aqui e ali, barcos flutuam coloridos como peixinhos de pescaria junina e devem ser considerados parte indissociável do cenário.

O fluxo de gente chegando e saindo das ilhas é super, os preços idem. Nos pontos para mergulho, o que de longe parecia azul turquesa de perto é meio turvo e tem uma fina camada marrom-óleo. Turistas ansiosos para ver o “nemo” atiram comida ao mar sem parar, falam sem parar, gritam sem parar. Nem o pássaro que flutua lá de cima escapa: seu ninho-iguaria é negociado a peso de ouro na indústria alimentícia chinesa.

Se vale a pena? Ao entrar na Baía de Pi-Leh, não teve ronco de motor, não teve grito de gente, que fez conter as lágrimas de encantamento.

p.s.: Ele também acha que tem algo errado ali, e isso ainda em 2009.

Barcos peixes-juninos na deslumbrante Baía Pih-Leh

Barcos peixes-juninos na deslumbrante Baía Pih-Leh


Uaus

O “problema” de passar muitos meses viajando é que são tantas coisas incríveis pelo caminho que depois de um tempo fica difícil se impressionar com novas paragens. Mas a costa sudoeste da Tailândia conseguiu aquele efeito olhos-boquiabertos-com-tanta-coisa-linda.

Tipo isso

Tipo isso

Não que as ilhas do sudeste façam feio, muitíssimo pelo contrário. A festeira Koh Phagnan fica irreconhecível no marasmo das praias do norte, e embora cada dia mais ocidentalizada, Koh Tao mantém um clima largadão delicioso na costa sul e bons pontos para mergulho (apenas fuja do período pós-Full Moon Party que tudo dá certo). Só que, tirando uma coisa e outra – como a cênica ilha Koh Nangyuan – nada tão arrebatador. Brasileiros, temos o direito de exigir no quesito praia.

Linda e lotada Koh Nangyuan, 20 minutos de barco de Koh Tao

Linda e lotada Koh Nangyuan, 20 minutos de barco de Koh Tao

Já neste lado de cá, a natureza foi um pouco além. Estou nas vizinhas Ton Sai/Railay Beach, complexo de praias sem ondas que convivem em perfeita harmonia com manguezais, formações rochosas enormes e cavernas que chegam até a beirinha d’água. O lugar é perfeito para quem não associa necessariamente praia à preguiça, com vários pontos de trilha e escalada. Os intrépidos são premiados com vistas e lugares de incessantes “uaus” e “nossa, isso é o paraíso”.

Vista de Railay East e West depois de uma suada escalada usando cordas

Vista de Railay East e West depois de uma suada escalada usando cordas

Para completar, a região tem um fenômeno de maré de embasbacar. No final da tarde, o mar retrai dezenas de metros deixando a paisagem com um aspecto rochoso surrealista, reforçado pelos tons violeta do sol que já se pôs. Por volta das 9h30 da manhã seguinte, é impressionante observar a praia se formando de novo em poucos minutos.

Antes

Antes

Depois

Depois

A rústica Ton Sai atrai escaladores, grupos de amigos e casais desencanados e famílias mochileiras. Saem buckets e música eletrônica, entram coffee shops e Bob Marley covers. Já Railay e seus resorts boutique chamam turistas mais tradicionais em busca de sossego. Ou seja, tem para todos.

p.s.: perto daqui fica a estrela Koh Phi Phi, cenário do filme A Praia. Como não raro em Hollywood, a ultrafama veio acompanhada da má fama, e relatos indicam que o paraíso está tão sobrecarregado de turistas que o cenário anda meio desolador. A conferir.


Don’t stop the party

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Passei os últimos dias em Koh Phangan, irmã do meio entre as três famosas ilhas do sudeste tailandês (Koh Samui e Koh Tao as outras duas). Trata-se da casa da mundialmente aclamada Full Moon Party, e mesmo beirando os 30, sentia que precisava conferir o que se passa ali na primeira lua cheia de cada mês. Dessas coisas de fazer uma vez na vida antes de morrer.

A sensação é de estar em algum lugar que não pertence exatamente a uma cidade ou a um país, e sim em um mundo à parte onde só jovens são admitidos. Um exército de ocidentais, média 20-25 anos, é despejado continuamente no píer da ilha aparentemente fabricada para recebê-los. Todos os tailandeses parecem estar ali somente para cumprir a função de entretê-los, transportá-los, dar teto, alimentá-los. A pool party mais conhecida da redondeza avisa que nativos não são permitidos “por questões de segurança”. Mas não tem problema se crianças locais são encarregadas de explodir os fogos de artifício na praia. Em uma das festas, a forra travestida de entretenimento consiste em permitir que gringos embriagados se esbofeteiem no ringue de thai boxing.

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Os dias que precedem e sucedem a Full Moon Party são pretexto para um sem-número de festas, e é tanta coisa emendada que fica difícil saber se trata-se do warm up ou do after. E se a natureza não colabora com luas cheias durante o mês todo, tem também a Half Moon Party e a Black Moon Party. A alusão ao universo baladeiro é tão presente que depois de alguns dias parece que a vida é isso mesmo, a preparação entre uma festa e outra.

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A música eletrônica bate sem parar no mercado, na loja de roupa, nos bares e na festa perto do hotel que já dura, sei lá, mais de um dia? A maior atração local, gritada sem parar por locais que se esforçam para parecer os mais simpáticos entre as dezenas de barracas enfileiradas, é o bucket. Sim, o balde, cheio até a borda com alguma mistura envolvendo álcool barato e bebidinha doce para disfarçar (refrigerante, suco, energético). Do outro lado do balcão, ainda prometem abraços gratuitos, shots gratuitos, balões com gás hilariante. Tudo para manter a trôpega clientela fiel.

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O dia da Full Moon Party tem seu ritual específico. Milhares surgem uniformizados com camisetas neon estampando o nome da festa, ainda que não seja obrigatório como nosso abadá. Corpos semidesnudos decorados com tinta neon desfilam pelos bares da Sunset Beach e dançam frenéticos em cima de plataformas de madeira explodindo de decibéis e luzes. Os festeiros se dividem entre os eufóricos e os entorpecidos demais para chegar a esse estado. A pegação é generalizada. Atraídos por buckets gratuitos oferecidos por certos bares, alguns se arriscam em concursos para pular cordas em chamas ou passar dançando debaixo delas. O mar é um festival de vômitos, mijadas e bêbados querendo nadar.

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A manhã chega e revela um cenário tortuoso de rostos arregalados em meio ao lixo acumulado na areia. Enquanto tomo café, percebo que o garçom da pousada é o mesmo cara que virou a noite trabalhando na barraca de bucket na praia. Quando parece que a ilha vai entrar em um estado de  ressaca coletiva, o tutstuts recomeça em algum outro lugar.


Mundopress

A Mundolândia estampa neste mês as páginas da super caprichada Revista Très, de Presidente Prudente (SP). Lembram de Goa, na Índia? Eles também querem ficar por lá!


Choque Thai

Estação Surasak

Confesso que está meio complicado me entender com a Tailândia depois de cinco meses no subcontinente indiano. A pobreza limitante dos preços rasteiros e de infraestrutura sofrível, somados à certa austeridade social, deram espaço ao país-centrífuga do tudo liberado, inclusive o visto. Saem os seletos viajantes que se atrevem, entram os milhares de turistas interessados em diversão fácil – inclua-se aqui o eufemismo para qualquer tipo de transgressão comportamental.

A mudança se fez sentir ainda mais depois da experiência nas montanhas nepalesas. Migrar da quietude autoreflexiva do Annapurna para Bangkok, a supermetrópole de todos os apelos sensoriais, foi um solavanco daqueles. Vou tateando com calma enquanto corpo e mente se acostumam. Sei que vão.

A sensação é de estar em uma cruza estranha entre São Paulo e Las Vegas. O calor acachapante faz meu corpo entrar em modo semi-desmaio, e os monstros-deuses que guardam os templos ganham tom de delírio em cores quentes. Os olhos se perdem nos superbanners e neons que vão passando pela janela do trem aéreo. Nos prédios supermodernos que dão horizonte ao respeitável fluxo de carros pontuados por táxis rosa-choque cintilantes.

Na rua mochileira, jovens turistas clamam pelos melhores momentos de suas vidas, sem lembrar que às vezes o tão alto implica em não voltar mais. Também não se lembram que, a poucos metros e dias dali, a Tailândia de verdade estava em violento colapso político, confirmado pela presença maciça de acampamentos militares por toda a cidade.

A noite chega com um estranho vento que não estava lá. Nas ruas acesas de vermelho, homens brancos velhos pagam bebidas a esculturais senhoritas de origem afro-asiática, a maneira barbie-afetada não condizente com o profundo sentido por trás dos olhos vidrados. Não muito longe dali, feirantes acumulados em esteiras na calçada esperam pelos bahts da manhã seguinte.

p.s.: a quantidade de estrangeiros que se perdem para sempre nos sem-limites da Tailândia é algo assustador. Mal cheguei e já vi que a vida real é pior que a ficção.

p.s.: ufa, finalmente turistas brasileiros. Aos montes.


Annapurna Parte 3 – A travessia

Não sou a mesma depois dessa temporada nas montanhas. E embora cada etapa da jornada tenha contribuído com seu quinhão, acredito que o chacoalhão que reverbera até hoje responde pelo nome de Thorung La.

Das poucas fotos que tenho (pegar a máquina na mochila dava exaustão pulmonar e o telefone congelou)

Desde o início do circuito, a necessidade de atravessar os 5,4 mil metros se impõe como uma obsessão dourada. A falta de distração nas pequenas vilas e a dedicação integral ao universo do trekking torna cada movimento uma ode ao Dia D. Tudo é pensado para evitar falhas, e a simples alusão à desistência é um tormento capaz de roubar horas de sono.

A altitude é a principal preocupação. À partir de 3,5 mil metros, o corpo começa a entrar em pane pela falta de oxigênio, e não são poucos os casos de resgate porque o negócio fica feio (ouvir o barulho do helicóptero chegando quando você está no primeiro quarto do circuito faz engolir seco). Mesmo aos mais resistentes, a qualidade de vida despenca após dias de sono interrompido de hora em hora pela falta de ar.

Também tem os reveses bizarros como o rapaz que caiu do cavalo e quebrou a perna, o homem que teve os dedos do pé congelados e o casal de férias que precisou voltar com o guia que estava passando mal. As más notícias vão se espalhando como lastro de pólvora para quem vem atrás e dão a devida proporção da seriedade da coisa.

No meu caso, o fator clima foi o mais complicado. Os livros garantem que meados fevereiro, finzinho de inverno, é um bom momento para o trekking porque o Annapurna ainda não está abarrotado de turistas, mas tampouco tão gelado. Só esqueceram de avisar a neve, que caiu em quantidade suficiente para paralisar dois dias e meio de caminhada e fazer da travessia um momento de inflexão para a vida toda.

A primeira tentativa de vencer o Thorung La falhou. Liderados pelo guia emprestado de um casal mexicano, cerca de 10 pessoas saímos embaixo de neve às 6 da manhã. Mesmo relutando para não deixar o grupo (pois sabia que não atravessaria sozinha), fui a primeira a desistir e voltar para o High Camp. O vento jogava gelo para dentro dos olhos, e o caminho que já estava suficientemente perigoso e escorregadio se tornou impraticável. As pernas bambearam, senti falta de ar. Depois de meia hora, ouvi vozes do lado de fora do quarto – todos voltaram.

Felizes pouco antes do fracasso do primeiro dia

Passamos o resto do dia frustrados, a neve sem dar trégua do lado de fora e o frio matando do lado de dentro. Várias pessoas decidiram voltar para Pokhara, e para os que ficaram, foi difícil manter o positivismo. Sabíamos que o psicológico refugaria se a manhã seguinte estivesse daquele jeito.

Mas o dia amanheceu glorioso. O sol forte desimpedido de nuvens deixou a neve recente ainda mais brilhante, ofuscando os olhos e queimando a pele. Meu pulmão sentiu cada um dos 566 metros da subida final, e pedia cargas extras de oxigênio em paradas esbaforidas a cada cinco minutos. A visão panorâmica das pessoas se arrastando, dando o seu melhor, animando umas às outras, era emocionante. No topo após cinco horas, mal consegui posar para as fotos porque cada movimento significava exaustão pulmonar.

Puxando um sorriso do fundo da alma no ponto mais alto

Mas o apocalipse veio mesmo depois. Já apostava na descida como um dos momentos mais difíceis do trajeto, pois implicava em despencar 1600 metros de uma vez. Só que a enorme quantidade de neve acumulada elevou o desafio a níveis hercúleos. Mesmo com o apoio de bastões de caminhada, devo ter caído umas 20 vezes, e cada reerguida do meio do montão de gelo fofo demandava uma energia que não sei de onde veio.

O trajeto levou mais tempo que devia, e com o sol já querendo alaranjar, nos vimos no meio de um mar branco sem água nem comida. Apelei para a neve quando a sede apertou. O mais perturbador era pensar que nem desistir era permitido, pois o telefone continuava sem sinal e helicópteros não chegavam ali.

Depois de quase 12 horas atropelando os próprios limites, ver  Mukhtinath surgindo iluminada pelos últimos raios da tarde foi como chegar a um reino encantado de boa novas e abundância, com a sensação sublime de dever cumprido.

Mukithnath surge encantada ao entardecer

*****

Aos aventureiros curiosos para saber o que aprontei por ali, segue um perfil técnico sobre a temporada no Annapurna:

Dia 1 – Pokhara – Besisakar: ônibus. Besisahar (820m) / Ngadi (890m) – Subida 70m, Distância 13km

Dia 2 – Ngadi (890m) / Jagat (1300m) – Subida 410m, Distância 12km

Dia 3 – Jagat (1300m) / Dharapani (1900m) – Subida 600m, Distância 15km

Dia 4 – Dharapani ( 1900m)/  Timang (2516m) – Subida 616m, Distância 8km (Dia interrompido com neve a partir das 12h)

Dia 5 – Timang (Dia parado: neve)

Dia 6 – Timang (2516m)/ Dhukur Pokhari (3240m) – Subida 724m, Distância 21 km

Dia 7 – Dhukur Pokhari (3240m)/ Ngawal (3680m) – Subida 440m, Distância 11 km

Dia 8 – Ngawal (3680m) / Manang (3540m) – Descida 140m, Distância 10 km

Dia 9 – Manang (3540m)/ Ledar (4200m) – Subida 660m, Distância 10 km

Dia 10 – Ledar (4200m) / High Camp (4850m) – Subida 650m, Distância 7km

Dia 11 – High Camp (Dia parado: neve)

Dia 12 – ((DIA D)) High Camp (4850m) / Thorung La (5416m)/ Muktinath (3800m). Subida 566m, Descida 1616m. Distância 14 km

Dia 13 – Mukthinath (3800m)/ Kagbeni (2800m). Descida 1000m, Distância 10km

Dia 14 – Kagbeni (2800m) / Kokhethanti (2525m). Descida: 275m, Distância 29 km

Dia 15 26 – Kokhethanti (2525m) / Tatopani (1200m). Descida: 1325m. Distância 23 km

Dia 16 – Tatopani (Dia de folga: Festival Shivaratri)

Dia 17 – Tatopani – Beni – Pokhara: ônibus

Total percorrido a pé: 183 km. Altitude escalada a pé: 4596m.


Annapurna Parte 2 – “Sozinha” (eterna)

A despeito da eremita que habita em mim, jamais cogitei desbravar o Annapurna sozinha. Me tranquilizava o discurso dos demais mochileiros sobre a facilidade para conhecer gente ainda no aeroporto de Kathmandu.  Mas os dias foram passando e nada. Só aí percebi que nenhum deles tinha passado pela baixa temporada para contar história.

Na madrugada daquele 11 de fevereiro, estava muito mais preocupada que feliz. Tinha passado os últimos três dias em Pokhara vagando de café em café, estudando o livro mágico e os mapas, esperando aparecer, quem sabe, uma companhia de última hora. Mas a cidade constantemente invadida por enxames de mochileiros estava às moscas.

Depois de horas rondando pelo quarto, estanquei a autovitimização ao entoar o mantra que vem me acompanhando desde o começo da viagem: não criar expectativas com situações que extrapolam meu próprio poder de ação e de decisão. Transplantado para a vida real, esse conceito implica em seguir confiante, e ao primeiro sinal de dificuldade insuperável, retroceder com a certeza de que fiz o que pude. No dia seguinte, peguei o ônibus já com a serenidade monástica que deu o tom do resto da jornada.

Dos 13 dias efetivos de caminhada, estive sozinha em apenas quatro e meio – três deles por opção, quando matutava sobre a vida já na descida. A maior parte da trilha é cansativa, porém não perigosa, com espaço suficiente para passar cavalos e bicicletas (isso quando ela não coincide com as estradas locais). O único requisito é caminhar – nada de pulos, agachamentos ou escaladas com a mão, que acionariam o botão eject sem dúvida.

Hoje analiso que o trekking solitário é altamente possível, embora não 100% recomendável. Sempre existe a chance de torção/queda, o que pode complicar porque sinal de telefone inexiste ali para pedir socorro. Contando só com o livro, também havia a possibilidade de me perder, mas o risco foi neutralizado com o empurrãozinho da gente local. Nos momentos de maior dúvida ou dificuldade eles apareciam do nada para apontar o caminho certo, jogar pedras nos cachorros prestes a avançar em mim ou falar quanto tempo faltava para a próxima vila.

Mesmo ciente dos perigos da aventura solo (cogitei até ataques assassinos de raposas e de leopardos da neve, vejam bem), foi justamente essa condição que permitiu alguns dos momentos mais marcantes dessa temporada. Porque a natureza nesse setor pontiagudo do planeta é tão esplendorosa que chega a dar nó na garganta, e não foram poucas as vezes em que me peguei falando em voz alta com as montanhas, elogiando tamanha formosura. Também não foram poucas as vezes que me perguntei que diabos eu,  essa m******* insolente, estava fazendo plantada sozinha no meio dos Himalaias.

Mas não tive medo. Depois de dias explorando seus meandros, mergulhada em silêncio contemplativo, senti que era bem-vinda ali.

****

p.s.: Tom, Sam, Andrew, Johannes, Max e Dog, obrigada pela ótima companhia e pelo apoio nas longas horas de caminhada. E agradecimentos mais que especiais aos meus kiwis super queridos Asher e Ben, os caras que estavam lá quando mais precisei.

p.s.: Tom, Sam, Andrew, Johannes, Max and dog, thanks to the great time and support during the long walking hours. And very special thanks to my super dear kiwis Asher and Ben, the guys that were there when I needed most.


Annapurna Parte 1 – Mirabolante

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Minha favorita, vista de Pokhara.

Ao longo dos últimos meses na estrada, o Nepal invadiu meu imaginário como a maior experiência de vida que estaria por vir. A idealização foi sendo alimentada por mochileiros que apareceram pelo caminho, em relatos carregados de montanhas, rios e vilarejos. Exploraram, esperaram, insistiram, para depois dizer com a satisfação de quem se permitiu o solavanco: “sim, eu estive lá”.

Já em Kathmandu, meu primeiro desafio foi escolher que rumo tomar. Estrela absoluta, o Everest fica no nordeste do Nepal e tem um circuito super popular de ida e volta ao seu acampamento de base (é de lá que os montanhistas sérios partem para a escalada rumo ao topo). Segundo fotos e depoimentos, o cenário dramático consiste de montanhas, rochas e gelo.

A região do Annapurna, no centro norte, também tem seu roteiro de ida e volta para acampamentos de base, sendo que um deles vai para a minha montanha favorita, Machapuchare (talvez o amor venha da semelhança com a montanhazinha da Paramount, pode googlar).  Mas o trekking que me ganhou desde o início foi o Annapurna Circuit, mais longo, que abraça 200 quilômetros da região.  O combo inclui inúmeras vilinhas, cenário mutante de verdes vales a picos nevados e o desafio de subir a 5,4 mil metros com a possibilidade de fazer a volta por um caminho diferente.

Mas ainda tinha um bônus de fase. Na Índia, soube de um esquema que permitia cumprir o AC independentemente, sem precisar contratar guia. Um belga apaixonado pelo Nepal deixou marcas pelo circuito indicando o caminho, e descreveu todo o trajeto em um livro que está disponível gratuitamente para download (mas que relativamente pouca gente conhece, segundo minha própria experiência). Sabe uma irresistível caça ao tesouro da vida real procurando sinais entre florestas e montanhas? Isso.

Mas ainda tinha o fato de estar sozinha, situação que ninguém tinha me descrito até então.

Isso deixo para o próximo post.