Annapurna Parte 3 – A travessia
Publicado; 06/03/2014 Arquivado em: Nepal 14 ComentáriosNão sou a mesma depois dessa temporada nas montanhas. E embora cada etapa da jornada tenha contribuído com seu quinhão, acredito que o chacoalhão que reverbera até hoje responde pelo nome de Thorung La.

Das poucas fotos que tenho (pegar a máquina na mochila dava exaustão pulmonar e o telefone congelou)
Desde o início do circuito, a necessidade de atravessar os 5,4 mil metros se impõe como uma obsessão dourada. A falta de distração nas pequenas vilas e a dedicação integral ao universo do trekking torna cada movimento uma ode ao Dia D. Tudo é pensado para evitar falhas, e a simples alusão à desistência é um tormento capaz de roubar horas de sono.
A altitude é a principal preocupação. À partir de 3,5 mil metros, o corpo começa a entrar em pane pela falta de oxigênio, e não são poucos os casos de resgate porque o negócio fica feio (ouvir o barulho do helicóptero chegando quando você está no primeiro quarto do circuito faz engolir seco). Mesmo aos mais resistentes, a qualidade de vida despenca após dias de sono interrompido de hora em hora pela falta de ar.
Também tem os reveses bizarros como o rapaz que caiu do cavalo e quebrou a perna, o homem que teve os dedos do pé congelados e o casal de férias que precisou voltar com o guia que estava passando mal. As más notícias vão se espalhando como lastro de pólvora para quem vem atrás e dão a devida proporção da seriedade da coisa.
No meu caso, o fator clima foi o mais complicado. Os livros garantem que meados fevereiro, finzinho de inverno, é um bom momento para o trekking porque o Annapurna ainda não está abarrotado de turistas, mas tampouco tão gelado. Só esqueceram de avisar a neve, que caiu em quantidade suficiente para paralisar dois dias e meio de caminhada e fazer da travessia um momento de inflexão para a vida toda.
A primeira tentativa de vencer o Thorung La falhou. Liderados pelo guia emprestado de um casal mexicano, cerca de 10 pessoas saímos embaixo de neve às 6 da manhã. Mesmo relutando para não deixar o grupo (pois sabia que não atravessaria sozinha), fui a primeira a desistir e voltar para o High Camp. O vento jogava gelo para dentro dos olhos, e o caminho que já estava suficientemente perigoso e escorregadio se tornou impraticável. As pernas bambearam, senti falta de ar. Depois de meia hora, ouvi vozes do lado de fora do quarto – todos voltaram.
Passamos o resto do dia frustrados, a neve sem dar trégua do lado de fora e o frio matando do lado de dentro. Várias pessoas decidiram voltar para Pokhara, e para os que ficaram, foi difícil manter o positivismo. Sabíamos que o psicológico refugaria se a manhã seguinte estivesse daquele jeito.
Mas o dia amanheceu glorioso. O sol forte desimpedido de nuvens deixou a neve recente ainda mais brilhante, ofuscando os olhos e queimando a pele. Meu pulmão sentiu cada um dos 566 metros da subida final, e pedia cargas extras de oxigênio em paradas esbaforidas a cada cinco minutos. A visão panorâmica das pessoas se arrastando, dando o seu melhor, animando umas às outras, era emocionante. No topo após cinco horas, mal consegui posar para as fotos porque cada movimento significava exaustão pulmonar.
Mas o apocalipse veio mesmo depois. Já apostava na descida como um dos momentos mais difíceis do trajeto, pois implicava em despencar 1600 metros de uma vez. Só que a enorme quantidade de neve acumulada elevou o desafio a níveis hercúleos. Mesmo com o apoio de bastões de caminhada, devo ter caído umas 20 vezes, e cada reerguida do meio do montão de gelo fofo demandava uma energia que não sei de onde veio.
O trajeto levou mais tempo que devia, e com o sol já querendo alaranjar, nos vimos no meio de um mar branco sem água nem comida. Apelei para a neve quando a sede apertou. O mais perturbador era pensar que nem desistir era permitido, pois o telefone continuava sem sinal e helicópteros não chegavam ali.
Depois de quase 12 horas atropelando os próprios limites, ver Mukhtinath surgindo iluminada pelos últimos raios da tarde foi como chegar a um reino encantado de boa novas e abundância, com a sensação sublime de dever cumprido.
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Aos aventureiros curiosos para saber o que aprontei por ali, segue um perfil técnico sobre a temporada no Annapurna:
Dia 1 – Pokhara – Besisakar: ônibus. Besisahar (820m) / Ngadi (890m) – Subida 70m, Distância 13km
Dia 2 – Ngadi (890m) / Jagat (1300m) – Subida 410m, Distância 12km
Dia 3 – Jagat (1300m) / Dharapani (1900m) – Subida 600m, Distância 15km
Dia 4 – Dharapani ( 1900m)/ Timang (2516m) – Subida 616m, Distância 8km (Dia interrompido com neve a partir das 12h)
Dia 5 – Timang (Dia parado: neve)
Dia 6 – Timang (2516m)/ Dhukur Pokhari (3240m) – Subida 724m, Distância 21 km
Dia 7 – Dhukur Pokhari (3240m)/ Ngawal (3680m) – Subida 440m, Distância 11 km
Dia 8 – Ngawal (3680m) / Manang (3540m) – Descida 140m, Distância 10 km
Dia 9 – Manang (3540m)/ Ledar (4200m) – Subida 660m, Distância 10 km
Dia 10 – Ledar (4200m) / High Camp (4850m) – Subida 650m, Distância 7km
Dia 11 – High Camp (Dia parado: neve)
Dia 12 – ((DIA D)) High Camp (4850m) / Thorung La (5416m)/ Muktinath (3800m). Subida 566m, Descida 1616m. Distância 14 km
Dia 13 – Mukthinath (3800m)/ Kagbeni (2800m). Descida 1000m, Distância 10km
Dia 14 – Kagbeni (2800m) / Kokhethanti (2525m). Descida: 275m, Distância 29 km
Dia 15 26 – Kokhethanti (2525m) / Tatopani (1200m). Descida: 1325m. Distância 23 km
Dia 16 – Tatopani (Dia de folga: Festival Shivaratri)
Dia 17 – Tatopani – Beni – Pokhara: ônibus
Total percorrido a pé: 183 km. Altitude escalada a pé: 4596m.