Explico

Depois de duas semanas chutadas no Sri Lanka, quando cheguei à extasiante média de uma cidade por dia, a última etapa no país vai quase parando, embalada pelo dolce far niente despretensioso da costa sul. Enquanto o litoral norte da ilha se abre após anos de guerra civil e o leste aquece os motores para se consolidar como destino turístico, o oeste (próximo à capital Colombo) já está meio é que saturado de tanto auê.

Quanto ao sul, já tem tempinho que a turistada aparece por aqui, mas (ainda) em fluxo ideal para dar fôlego a uma estrutura rústico-charmosa. E muito embora os amantes da gastação já possam se esbaldar em hotéis butique e galerias de arte,  o que reina mesmo por essas paragens é um climão sossegado de quem só quer uma cadeira ao sol, um bom livro em uma mão e um suco fresco de manga na outra. Adicione aí uma vista para o mar, que faz às vezes de azul transparente/turquesa, e está aí  um cenário difícil de desapegar.

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Mirissa, a melhor praia da costa sul do Sri Lanka.

E se outro dia reclamava dos preços abusivos no reino do Ceilão (que, aliás, continuam lá), por aqui consolidei a ideia de que é possível driblar a sanha caça-euros e apreciar programas imperdíveis por uma pechincha. Eis:

1)  Hospedagem R$ 30 o casal – este achado não está no Lonely Planet nem no Rough Guides. O segredo? Chegar sem reserva e sem frescura e barganhar com as pousadas que pipocam em casas de família. Encontrei esse preço, inclusive, incluindo café e jantar (e falo de Mirissa, a melhor cidade praiana da costa sul).

2)  Refeição coma-até-explodir por R$ 2 – o famoso rice and curry sinhalês (mistura de arroz com pelo menos três tigelas de vegetais cozidos em diferentes temperos + um biscoitinho frito chamado papadam) sai por até R$ 12 nos recintos turísticos. Em pelo menos duas cidades na cara região das montanhas (Nuwara Eliya e Pattipola), encontrei o mesmo set por R$ 2. Mais uma vez, esqueça o guia e comece a virar esquinas insuspeitas. Pare onde há burburinho local.

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3) O melhor passeio pelo SL por até R$ 6 – Motoristas de tuktuks se assanham para vender todo tipo de passeio a partir de R$ 40. Mas o Sri Lanka fica lindo mesmo é de bicicleta. Seja entre as ruínas antiquíssimas de Polonnaruwa, seja se embrenhando pelas estradinhas vicinais do sul do país regadas a um clima total jungle, o aluguel da magrela sai a cerca de R$ 6 por 24 horas. Conta comigo: 1) você faz seu ritmo, 2) exercita as pernocas e 3) ainda recebe todo carinho da população local, que para o que está fazendo para saudar sua passagem com um sonoro HELLO! Juro que no final do passeio o único músculo que doi é do rosto. E só aí você percebe que ficou com um sorriso estampado na cara por horas a fio.

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4)  Sítio da Unesco de graça (sim, existe) – O SL é bom de salgar o preço dos patrimônios reconhecidos pelo braço cultural da ONU, com média variando entre US$ 25 e 30. Mas aproveite enquanto ainda não tiveram a mesma ideia com a fofa Galle Fort, herança da ocupação holandesa/portuguesa, onde só precisa chegar.  Ah, e o mesmo para o incrível Adam’s Peak, que já mencionei aqui outro dia. Não é Unesco mas está tal qual na régua de interesse cultural a custo zero.

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Humor Brasil

De saída da preguiçosa Tangalle, a irmã do dono da pousada me esperava no portão para uma última confidência. Mulher de meia idade que cuidava de tudo ali, adorava emitir pareceres sobre quem transitava pelo hotel, de hóspedes a motoristas de tuktuk.

(séria) – Esse rapaz aqui é não não bom.

– Nossa, e quem é ele? – perguntei, sem graça com a flechada no bigode logo ao lado.

– Meu marido. (gargalhada e tapão na costela do Zé)


A fé e o Pico do Adão

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As pernas continuam bambas e doloridas 48 horas depois. Além delas, as fotos denunciam que estive mesmo lá, embora as lembranças daquela madrugada estejam embaralhadas como um sonho insano que recusa ser esquecido.

Dentre as milhares de montanhas do mundo, uma muito especial fica encrustada no centro-sul do Sri Lanka. O nome preferido pelos turistas, Adam’s Peak, não é o mesmo conhecido pelos locais, Sri Pada, mas ambos dizem algo sobre o apelo religioso do lugar venerado por milhares de sinhaleses a cada ano.

Entre dezembro e janeiro, budistas, hindus, muçulmanos e cristãos rumam para a montanha em peregrinação, cada qual justificando a importância do lugar com sua crença. No alto do cume a 2,2 mil metros, estaria a pegada de Adão, Buda, Shiva ou São Tomás, a gosto do fiel.

O objetivo da coisa toda é vencer os mais de 10,4 mil degraus entre subida e descida, o que parece inviável logo no primeiro quarto do desafio. Só a escalada leva 4 horas e meia, e muitos preferem cumprir o percurso durante a madrugada. Discípulos do Lonely Planet vão pela experiência turistona de ver o sol nascer do cume e uma suposta sombra misteriosa. Mas garanto que escalar o Adam’s Peak é tudo, menos isso.

20140117-015530.jpg O verdadeiro arrebatamento é presenciar a devoção que não poupa bebês de colo ou senhoras octogenárias, muitas de pés descalços para aumentar o desafio. Pelo caminho, pessoas passando mal ou retiradas de maca, a cara de sofrimento de crianças e adultos chorando porque não, gente, não dá mais. Mas eles sabem que precisam continuar.

Eu, que não tenho fé em pegada nenhuma, me agarrei à fé em mim mesma para tentar coordenar as pernas-gelatina rumo ao eterno “mais um degrau”. E quando você acha que está acabando o que já tinha concebido como infinito, a mudança para degraus ainda mais íngremes fazem lembrar do alerta do guia: ainda faltam 1500. Só completei os últimos lances depois de um transe induzido via Ipod.

E se o esforço físico parecia insuportável, a paulada psicológica viria mesmo já no pesudo-Éden sobre as nuvens. Ali, milhares de pessoas exaustas, sonolentas e suadas se amontoavam para venerar a pegada mágica protegida sob um telhadinho de alumínio.

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Depois de uma hora prensada na fila entre os locais, o sol nascente derretendo a pele sob a jaqueta, sucumbi e comecei o caminho de volta. Entendi que só Adão/Shiva/Buda/São Tomás explicam aquilo.


Não sei, não sei

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Ruínas de Polonnaruwa: 25 doletas + tarado de brinde

O Sri Lanka já vai pela metade e ainda não sei o que sinto pelo país.

De repente criei muita expectativa com o melhor destino de 2013 segundo publicações especializadas e um casal de ingleses que conheci em Calcutá. De repente cheguei depois da Índia, que não tem comparação. De repente tenho apenas três semanas e tudo vai meio corrido.

A parte boa? Variedade de atrações em uma ilha relativamente pequena (são 434 km norte/sul e 227km leste/oeste), com oito patrimônios reconhecidos pela Unesco. Tem montanha, praia, parques nacionais, sítios arqueológicos AC/DC e a interessante herança religiosa puxada por um budismo diferente, onde quase não vejo monges, os seguidores andam de branco impecável de propaganda de sabão em pó e é possível encontrar Shiva e Ganesha no mesmo altar do príncipe Siddharta.

Quanto ao aparte, sinto que o Sri Lanka ainda não está tinindo para receber o público mochileiro, e essa não é uma reclamação só minha. Com a recente abertura depois de anos de guerra civil, parece que tudo está sendo direcionado para pinçar dólares e euros do pessoal em férias, que chega aqui aos montes disposto a gastar em nome da experiência à jato. E o país trata de aproveitar a modinha botando os preços acima do que realmente valem.

Por exemplo, não tem como amar plenamente um lugar onde cada atração depena entre 25 a 30 dólares dos visitantes além-mar (o preço em dólar mesmo, para você entender bem com quem eles estão falando). A preguiça maior não é nem pagar, mas saber que o valor não condiz com a realidade econômica local e que a extorsão é voltada a você, turista estrangeiro.

A hospedagem é outro porém. Meio cara, sem muitas opções para backpackers solitários nos sites de reserva online e sem muitas referências, o jeito é chegar explorando com o trambolhão nas costas, o que nem sempre é uma boa ideia para mulheres sozinhas.  Já teve dia que, 18h30 e debaixo de chuva, ainda não tinha onde ficar. Já teve hotel escolhido ao acaso onde o recepcionista pegou meu telefone na ficha de registro e ficou mandando mensagens cheio de amor para dar.

Falando nisso, os homens daqui  me parecem mais atirados que na temida Índia.  Esse foi justamente o motivo do meu segundo imbróglio com a polícia local em menos de uma semana. O cara achou de bom tom fazer gestos obscenos para mim em diferentes pontos de um sítio arqueológico do século 10 (desses que custaram 25 dólares para entrar e deveriam ser superseguros). Após ser localizado na mata, levou um esfrega generalizado e deve ter aprendido a nunca mais mexer com mulheres sozinhas. Ou assim espero.

Sei que estou meio anticlímax, mas às vezes é bom falar francamente e mostrar que a a vida por estas bandas nem  sempre é um episódio colorido e feliz do National Geographic.

Mas amanhã volto com o Sri NatGeo, bem colorido e feliz, prometo.


E o Sri Lanka, hein?

Galle Rd, uma das mais movimentadas de Colombo.

Galle Rd, uma das mais movimentadas de Colombo.

Voltando à programação normal, vamos falar do Sri Lanka? Afinal, são só três semanas, e uma já foi (!).

Começo me redimindo por ter mencionado ali atrás que o SL seria uma mini-Índia. É um conceito bem errado, reproduzido com base na opinião de outros e observação insuficiente de recém-chegada. Porque de fato não precisa de muito esforço para perceber que outra alma habita este país.

As semelhanças (e só com o sul da Índia) talvez se limitem aos motoristas de tuk tuk por todo lado, ao calor abafado, à comida apimentada e a alguma semelhança física entre os habitantes locais.

Já a diferença mais gritante está na urbanização. O Sri Lanka é mais limpo, as ruas e estradas são mais arrumadas, quase não tem buzina.  O estilo das cidades, mesmo no interior, parece mais moderninho e ocidental. Sai o hinduísmo dominante, entra o budismo, seguido por 70% da população. Os únicos animais na rua são os cachorros, e é possível encontrar carne vermelha em qualquer restaurante.

Quanto à capital, Colombo, um conselho? Não comprem a opinião dos guias e blogs de viagem. Eles dão uma diminuída enviesada na cidade lembrando que não há monumentos ou atrativos naturais por lá, levando a maioria dos viajantes a descer do aeroporto direto para as praias, montanhas e parques nacionais espalhados pelo Sri Lanka – um desperdício.

E o que tem para fazer em Colombo? Na minha opinião, qualquer capital merece ao menos um dia de caminhada de reconhecimento, afinal, trata-se de um importante microcosmo do país.

Vagar pelos bairros, observar o ritmo da cidade, perceber a mescla da cultura sinhalesa com influências ocidentais, saborear um chá com bolinho com os locais, fazer compras na incrível loja de departamento made in Ceilão…Para mim, estar no meio das pessoas a saber como o país avança é uma experiência turística tão ou mais significativa que praias paradisíacas e monumentos da Unesco.

Até!

p.s.: mesmo com a máquina roubada, esse bendito iCloud salvou os registros de Colombo via wifi. As fotos no Flickr estão na coluna aqui do lado!

p.s.2: o tempo passa voado e a gente nem tchum, mas ó, três incríveis meses de estrada exatamente hoje.


Obrigada, ladrão

Uma das maiores pragas da humanidade é a expectativa. Ficamos ansiosos esperando que algo aconteça. Aí ficamos metódicos para que a tal coisa aconteça exatamente do jeito que planejamos. E, por fim, ficamos frustrados quando a situação não sai lá bem do jeito que imaginamos (ou seja, quase sempre).

Já tem um tempo que estou em processo de autodetox desse péssimo hábito, mas o negócio ganhou corpo especialmente nesta viagem, onde tudo é um mar incertezas e coisa mais fácil é dar com um programa de índio incidental.

Aí que nesta semana, como vocês já sabem, veio o roubo do celular bem na véspera do aniversário, em dias de chuva torrencial em Kandy. Old Débora já estaria praguejando porque tinha expectativa de um aniversário incrível cheio de coisas boas. Débora nova está achando que coisa boa mesmo foi esse larápio ter aparecido. Senão vejamos:

– Não fosse essa história, não ficaria a lição para tomar cuidado quando o ambiente parece inofensivo.

– Não fosse essa história, não ficaria o calorzinho no coração pela solidariedade dos turistas que interromperam seus passeios para ajudar no que fosse preciso.

– Não fosse essa história, não ficariam as interessantes horas de convivência com a polícia local, que mesmo com inglês e possibilidade de ação limitados, tratou o caso como se tivesse acontecido com um vizinho – com atenção, sorrisos afetuosos e um copinho plástico de guaraná amarelo para alegrar a aniversariante que dava queixa.

– Não fosse essa história, não ficaria a satisfação por conseguir dar a volta por cima e resolver tudo em apenas um dia.

– Não fosse essa história, não ficaria um dia a mais no hostel convivendo com a zeladora mais fofa do planeta. Do tipo de gente que não aguenta ver você preparando um miojo puro e corre para cozinhar uns legumes para dar mais sustância. Não, você não pagou por isso, é da comida dela.

–  Não fosse essa história, passaria o dia inteiro do aniversário vagando por aí de mente desocupada, lamentando não estar perto dos queridos do Brasil. Não daria o devido valor a um suculento prato de espaguete e a uma torre de chopp na prazerosa companhia de colegas de hostel depois de um dia resolvendo pendengas na rua.

– Não fosse essa história, não teria vivenciado uma situação real para treinar a calma e o autocontrole. O tipo de coisa que não adianta especular em teoria meditando em templo budista: a hora do vamos ver é quando, claro, as coisas estão fora do controle.

– E, principalmente, não ficaria a prova empírica, via crowdfunding, de que vocês estão aqui, apoiando e se divertindo com essa viagem, incluindo gente que eu sequer conheço. É efeito colateral que nem um milhão de celulares roubados poderiam pagar.


Mundolândia passa-pires

Está vendo essa foto aqui do lado? >>>>>>>>>>

Pois é, trata-se do último registro fotográfico deste blog antes que a máquina que o abastece, vulgo Iphone, fosse roubada. Aliás, a parte escrita da Mundolândia também era provida, comentada e atualizada com o telefone. Ou seja, ferrou, minha gente.

A boa notícia é que nem preciso da máxima “você ainda vai rir de tudo isso um dia” – confesso que já esboço um sorriso interno quando lembro de alguns detalhes da pataquada a la Kandy.

Shit happens

Shit happens, folks!

O bisonho vai desde o cenário do crime, a saída do templo que guarda um dente highlander de Buda que já foi destruído/marretado/roubado mil vezes, até as horas dignas de episódio d’Os Trapalhões tentando solucionar o caso com a atenciosa polícia local. Também teve os diálogos mudos com o ladrão do outro lado da linha e mensagens 007 que chegaram no meu computador com números secretos para ligar. Liguei e o cara se emputeceu, mas nada de Iphone.

A boa nova é que lancei um crowdfunding especial de aniversário (tem isso também, o meu é hoje gente!) para ajudar na aquisição de um novo tel. Se você gosta dissaqui e quer continuar se alegrando com a Mundolândia pelos próximos meses, dá uma passadinha lá. Ah, é só hoje (7/01), viu!

http://www.arrekade.com.br/voltaiphone

p.s.: os seus R$ 5 estão melhor investidos aqui que em uma (1) bala toffee no aeroporto de Congonhas, vai. E cada R$ 5  (valor mínimo de doação) é, sim, muito importante.

p.s.2: algumas pessoas com dificuldade para o pagto pelo Arrekade estão fazendo a transferência por banco. Se esse é seu caso, manda um mensagem pela área Contato do blog que resolvemos o problema!

p.s.3: os valores arrecadados acima da meta iphonica serão considerados como Bolsa de Apoio e Incentivo à Mundolândia, que só faz gastar.


Índia acaba aqui

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Nada mais bonito que o fim.

Parece que só com data limite conseguimos aproveitar as coisas intensamente, como deveria ser tudo na vida. Buscando as imagens que ilustram este post, tenho certeza de que assim foi minha passagem pela Índia, 31 destinos e mais de 10 mil quilômetros depois.

Só hoje, há dois dias longe do país que foi minha casa pelos últimos três meses, apareço para avisar que já estou no Sri Lanka. Dado o sumiço dos últimos tempos, preciso contar que as festas de fim de ano em Kerala foram regadas a sentimentalismo letárgico, daqueles que fingem ignorar o inadiável. Mas o avião não tem tempo para pieguices e cá estou na capital do antigo reino Ceilão, essa indiazinha-mini, desde o dia 3 de janeiro.

Muito antes de qualquer roteiro, sempre soube que precisava começar a viagem pela Índia. Eu, que passo longe do estilão camiseta de OM / yoga / incenso e que derrapo a passos largos no caminho da espiritualidade. Muitas vezes me perguntaram se a jornada saía como planejado, e eu resumia com um “sim” ponta de iceberg. Completo agora que não foram poucas as vezes que chorei de emoção.

As gentes (ah, as gentes), os perrengues, as fés, os caminhos, os lugares, as novidades, tudo em absurdas ondas de informação, desbastaram minha casca e entranharam em infusão pelos poros, até que virei uma pessoa diferente. Não sei se melhor ou pior, se mais calma ou mais intensa, se com menos respostas ou mais perguntas.

Ou de repente tudo isso junto em um delicioso paradoxo harmônico, como a Índia ensina tão bem.

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p.s.: a partir de hoje, o link com o mapinha interativo está fixo na seção Roteiro. Mais fácil, né?


Meu surpreendente natal indiano

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Ao contrário do que pensam os leitores, meu natal na Índia foi cheio de Jesuses, presépios e papais noeis. O rebuliço em torno do aniversariante foi tanto que até ceia teve – tudo bem que acabou às 22h30, mas né, o importante é confraternizar.

“E os deuses azuis cheios de braços? E os deuses macacos? Como assim Jesus?”, pergunta você, já sem entender nada.

Embora o hinduísmo prevaleça entre mais de 80% da população, a Índia abraça calorosamente inúmeras religiões – a convivência é tão harmônica que não é raro encontrar Jesus dividindo altar com Shiva (azul) e Hanuman (macaco), especialmente no sul do país. Em Cochin, antiga colônia portuguesa onde estive nos últimos dias, uma significativa comunidade católica preserva costumes como a representação do auto de natal com as crianças da catequese e a missa do galo, uma fofura só.

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Não sabia muito bem dos detalhes até chegar lá e me refestelar na hospitalidade natalina local. Mais uma vez aquela sensação boa de estar em casa, mas dessa vez em casa mesmo: me hospedei na residência de uma querida família católica de pai, mãe e duas pequenas mocinhas. Estar no sofá da sala com eles ao som de um DVD de disco music natalina, enquanto saboreava os deliciosos bolo e vinho natalinos preparados pela matriarca, foi muito mais que esperava esse já amarfanhado coração mochileiro.

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Nas ruas, cada venda, cada corrida de tuk tuk, cada conversa ininteligível entre os locais, era encerrada com votos de happy christmas. Intrigada com a quantidade de cristãos, pergunto se o rapaz que acabou de fazer votos é católico. Diz que é muçulmano, mas saca um colar de crucifixo de dentro da camiseta. Me surpreendi ao descobrir que a antiga sinagoga estava fechada em homenagem ao aniversariante dissidente. No mural perto dos pescadores, Shiva e Jesus posavam lindos para a pintura.

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p.s.: Cochin em si é um cidadão com mais de 600 mil habitantes, mas um pedacinho dela, Fort Cochin, mantém o clima de vila pequena com cheirinho de maresia. Mesmo sem praia frequentável, o mar atrai atenções com os pescadores equilibristas que operam antigas engenhocas de freios e contrapesos – um interessante contraste com os cargueiros enormes que vão e vem de um dos portos mais movimentados da Índia.

p.s.2: aproveitando o ensejo, boas festas a todos!


Goa, onde quase fiquei

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Goa é um lugar tão especial que fica difícil explicar assim, sem uma tosca metáfora culinária. Pegue uma panela e misture Índia, Portugal e Rússia, com uma pitada de turistas da Europa e da Austrália. No recheio, adicione resquícios do que um dia foi o paraíso hippie e hoje está salpicado de resorts e pousadas boutique, muito embora o lugar mantenha o ar despretensioso embalado pelo jeitão desencanado dos locais. Essa é Goa, pronta para servir.

Acho que o território começou a se desprender seriamente do padrão Índia com a chegada do portugueses no Século 15. Os lusitanos deixaram ali um clima easy going parecidíssimo com o do lugar que descobriram “por engano” séculos atrás, no caso o Brasil. Justamente quando tentavam alcançar as Índias, vejam só.

Nenhum goense pede para tirar foto, ninguém liga se a russa está fazendo top less na praia, e o consumo de álcool é o mais liberado e barato da Índia. O ônibus que leva os trabalhadores para cima e para baixo parece uma balada ambulante, o som bombando o dia todo. Goa lembra demais a Bahia histórica das igrejinhas caiadas, de natureza deslumbrante e bafo úmido que dão vontade de não ter vontade de nada, só preguiçar pelo resto da existência.

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Depois de dois meses viajando pela confusão linguística que é a Índia, chegar pela empresa Paulo Travels, ser recebida pelo atendente Antonio Fernandes que me oferece o jornal O Heraldo, e logo mais caminhar pelo Convento Santa Mônica, tudo ali escritinho com nossa língua pátria, dão a sensação deliciosa de estar em uma filial de casa do outro lado do mundo.

Pena que o português falado tenha se perdido nas gerações antigas, mas Jesus, ah, esse ainda é o rei dos corações goenses, com altares e crucifixos espalhados por toda parte piscando luzes móveis coloridas. Quase comecei a rezar junto quando a tiazinha do ônibus sacou um rosário da bolsa.

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Muito embora os preços estejam altos para o padrão Índia, ainda é possível encontrar long necks geladas a 1 real e hospedagem por pouco mais de 10 reais a diária. Águas mornas e calmas, praias cercadas por coqueiros majestosos e pôr do sol no mar, isso aí tudo por conta da casa.

Não são poucos os relatos de gente que veio passar uma semana e ficou, o que achava coisa de doidão podiscrê. Ali descobri que o risco é real.