Eles

Já era noite quando desci na estação de trem em Sanjiang para embarcar rumo ao próximo destino. O alívio por chegar a tempo virou apreensão quando pessoas começaram a me apontar um papel em mandarim pregado na parede.

Mandei uma foto por email para o hotel daquela manhã pedindo SOS na tradução. Responderam que a linha não estava funcionando, e um minuto depois, fizeram a gentiliza de enviar uma nova mensagem com todas as formas alternativas de seguir viagem no dia seguinte. Acabei passando a noite em uma espelunca perto dali, a única aberta àquela hora, onde o colchão era uma esteira de bambu.

Pela manhã, o taxi me levou para a estação errada e perdi o ônibus certo. Peguei o rural no lugar do expresso, e a viagem até Tongdao, que era para levar três horas, demorou cinco. Depois entendi que esse era o ônibus premiado; estar rodeada de camponeses, pingando de vila em vila no coração da China, foi uma experiência que nem programando sairia tão boa.

Cheguei em Fenghuang de noite, debaixo de chuva. A cidade histórica estava um breu completo e eu não conseguia achar o hostel. Uma família alemã que passava de lanterna avisou que houve uma enchente e que a parte turística foi toda alagada e estava sem luz e sem água. Procurei um hotel na parte nova, que só tinha luz, e convenci a tia e a sobrinha a cortarem o preço de 250 para 150 yuan como incentivo ao banho de balde. Mas quando tirei a nota de 100 acharam que já estava bom.

No dia seguinte saí para olhar a cidade e o cenário era daqueles. O rio transbordou arrebentando a área histórica justamente na época mais rentável do ano. Só que ali ninguém choramingava. Cada um com sua pá, seu esfregão, seu paninho, retirava os escombros e limpava a lama, às vezes até rindo e brincando com as crianças, com uma paciência e eficiência que eu desconhecia. O governo deu uma semana para tudo voltar ao normal; eu dei uns dois, três dias.

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Fenghuang

A moça da agência municipal de turismo disse que nunca viu tanta destruição, mas me ajudou com os horários de ônibus como se nada estivesse acontecendo. À luz de velas, pediu desculpas pelas condições da cidade (!), deu uma garrafa de água mineral (!!) e disse que Fenghuang me esperava em uma próxima oportunidade.

De volta ao hotel, a tia-dona (que não falava inglês) foi comigo até o outro lado da cidade para ajudar com a passagem de ônibus. Comprei um pão doce de presente na hora do almoço e usei o tradutor do telefone para explicar que era uma forma de retribuir a gentileza, pois ela também havia prometido me levar de moto até a rodoviária. Fez não apenas isso, como também carregou minha mochilona até o ônibus e só sossegou quando me viu instalada na poltrona, com o moneybelt preso na cintura (e não dentro da bolsa, como estava).

Nos despedimos. Quando eu fazia uma retrospectiva dos últimos acontecimentos, refletindo sobre a gentileza e a generosidade que venho presenciando desde que cheguei na China, essa mulher reaparece na escada do ônibus com um saco cheio de guloseimas, no melhor estilo mãe Dalva/Vó Zeza.

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Sobrinha e tia, braço operacional da família Zampier na China

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Bolo, sopa, biscoito, chá, pirulito e até guardanapo <3

Se não for assim e eu só estiver dando sorte, pode parar que essa amostragem já está muito grande.

p.s.: generalizar nunca é bom, mesmo para o bem. Por isso registrei a informação do menino de Cingapura, que disse que com ele as coisas não são bem assim.

p.s2: para quem não é meu contato no Facebook, segue um resumo do que aconteceu no primeiro dia de China.

1) taxista da fronteira não só me deixou na rodoviária. Desceu comigo, ajudou a achar o ônibus, a comprar o tíquete e a despachar a bagagem. Só foi embora quando me viu embarcada.

2) dono da loja de celular que fechava às 20h30 ficou até 22h comigo na loja, até conseguir me arranjar uma internet. No final ele e esposa pediram para tirar foto comigo porque nunca viram uma estrangeira.

3) minha coca-cola caiu da bandeja e espatifou no chão da lanchonete. O moço da mesa ao lado me comprou uma nova e disse thank you.

4) não tinha mais bilhete de trem (10h de viagem, noturno) e ia viajar sentada no chão. Uma família se espremeu na cadeira para me dar lugar (um deles com uma jaqueta do Brasil, ainda sem saber de onde eu era). Me arrumaram uma bateria extra para carregar o telefone que escreve essa mensagem.

5) Estava sem trocado para o ônibus circular (aqui não tem bilheteiro) e o motorista me deixou andar de graça.

Os dias seguem e a lista não para, é impressionante.


4 Comentários on “Eles”

  1. Luana disse:

    Não é sorte! É aquela máxima que cada vez faz mais sentido: gente boa atrai gente boa! Te amo, amigue!

  2. Aline disse:

    Que sorte heim!! muito bom encontrar pessoas tão legais assim… ainda mais nesse mundo que a gente vive.. tão individualista! amei as guloseimas.. parece tudo muito gostoso! rs. beijos.

    • deborazampier disse:

      Também estou bastante feliz com o tratamento aqui, ainda mais depois de nove meses life do Brasil. Já ganharam o posto de povo mais amigável da viagem, e olha que bater Mianmar e Nepal é difícil hein! Bj


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