Sobre parar e continuar, parte dois

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Simpatizo com o protagonista real de Na Natureza Selvagem, mas nunca consegui decidir se Christopher McCandless foi um corajoso inspirador ou um inconsequente teimoso. Me pergunto se em algum momento ele poderia ter reconsiderado os termos da jornada sem precisar morrer sozinho no meio do nada, justamente quando tinha tantas coisas para dividir. E desde que assisti ao filme, me pergunto em que momento persistência e obstinação deixam de ser adjetivos para se virarem contra o portador.

Como falei outro dia, meu corpo andava meio estressado com a estrada, e com razão. Nunca tratei esse ano como férias, e tirando uns dias aqui e ali, sempre viajei rápida e intensamente. Cortei radicalmente as carnes logo no início e ainda pulava refeições com mais freqüência que devia, enquanto o esforço físico multiplicou. Perdi 10 quilos, fiquei anêmica, perdi metade do cabelo. Lembro quando li A Revolução dos Bichos durante uma nevasca no Nepal e achei tão estúpido o cavalo Sansão, que trabalhava o dobro com metade da ração em nome do ideal coletivo. A equação podia até soar desequilibrada para cavalos comunistas, mas comigo, veja bem, tudo certo.

A picada infeccionada no Camboja levei um mês para tratar. No episódio que engatilhou a situação atual, me perdi pela trilha do monte chinês Huangshan e subi e desci mais de mil metros em apenas um dia, trajeto de 20 quilômetros que o guia classifica como “slightly insane”. Já doente, continuei viajando, pegando trem lotado, chuva, sol forte. Como maior interessada na minha própria saúde, juro que achei normal, sempre aguentei tudo. Aí veio aquela sinusite, e depois de duas semanas de molho compulsório, as coisas finalmente se encaminhavam para a retomada de uma viagem mais consciente e saudável, ufa.

Decidi sobre a Mongólia, escrevi o ultimo post, fui à Grande Muralha. E umas coisas estranhas apareceram. Os olhos doloridos e abertos demais, a claridade machucando. O corpo foi perdendo a velocidade e começou a pulsar devagar, acompanhando a câmera lenta meio deformada das coisas e pessoas ao redor. Com as mãos geladas, vieram calafrios e sensações de desmaio, parecia que ia entrar em choque. Uma ideia fixa de que ia morrer sozinha em Pequim.

Três dias letárgicos depois, já com exames em ordem na mão, o médico disse que devo ter me intoxicado com o antibiótico, provavelmente com a participação da estafa de 10 meses na estrada associada à debilidade com a sinusite que passou.

– Mas doutor, eu estava super empolgada com o próximo destino, queria muito continuar.
– O diabético pode gostar muito de doce, mas nem por isso pode comer como quiser.

Então decidi pegar um vôo para a França, porque tudo isso aconteceu na mesma época em que mãe e irmã estariam de férias por aqui.

Se existiu algum momento em que poderia mudar alguma coisa, justamente quando tenho tantas coisas para dividir, me pareceu este.

p.s.: ainda recuperando da visão alterada, zumbidos nos ouvidos e dores nas costas, mas já bem melhor. Mais sobre efeitos colaterais de antibióticos aqui.


Sobre parar e continuar

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Saí para almoçar sem decidir. O próximo destino, tão instintivo até aqui, parecia engasgado. Tinha os 10 meses exaustos de estrada. Tinha a China imensa e demolidora do último mes. Tinha a Mongólia soando meio inóspita demais como próximo destino (se bem que a história do visto liberado pareceu alvissareira – leia isso se considera conhecer o país até 2015).

Foi nesse cenário que nos esbarramos na recepção do hostel, ele ainda voltando da noitada anterior. O doutor portorriquenho não está viajando há dez, mas nove meses. Acabou de vir da Mongólia, e antes do Oriente Médio e da África. Me presenteou seu guia do último destino, além de depoimentos empolgados e dicas que não chegariam de outra forma. Também me emprestou afinidade e brilho nos olhos que andavam preguiçosos com isso de colocar a mochila nas costas.

Sentados na sarjeta em frente ao hostel, entre blocos de anotação, folders e telefones, nos mostramos marcas da viagem – eu uma tatuagem preta média na perna depois de uma picada de mosquito infeccionada no Camboja; ele um pedaço de pele extirpado enquanto explorava a Mongólia a cavalo.

Praguejei contra a sinusite bacteriana que me atropelou nas duas últimas semanas. Confessei o pranto desconsolado enquanto derretia de febre no sotão de um albergue no interior da China. Ele disse que não sabia o que era chorar até pegar malária em Moçambique. Ficou 18 dias doente,12 achando que ia morrer, não tinha vaga no hospital. Falou do pânico que foi perder a noção de quem era por alguns minutos enquanto tentava comprar remédios. “Só pensava que aquilo ia me fazer mais forte e virar uma história de viagem”.  
 

– Mas sério, estou cansada.

– Eu também. Já considerei parar e voltar quando der.

– Também. Mas alguma coisa continua dizendo para continuar.  

– Foi tão complexo o processo de separar esse ano, de finalmente estar aqui, que parece meio ridículo desistir agora. Até porque, que depois é esse? Quem garante que amanhã eu posso voltar? 

Ninguém garante, dizem os jornais.


Outras coisas chinesas

Antes tudo parecia diferente demais. Depois desse mês aqui, seguem algumas observacões fundamentadas.

1) Cachorro quente, o verdadeiro
Parece que é um público bem restrito (e me garantem, cada vez menor). Só achei uma loja autodeclarada de carne de cachorro, essa da foto. Por outro lado, coisa mais fácil é ver chineses passeando com seus animais de estimação pela rua.

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Em Lijiang, província de Yunnan

2) Escatologias públicas
Cuspir, arrotar, soltar pum, colocar crianças para fazer necessidades na rua, tudo verdade. Mas desde a Índia tenho achado meio infantil usar o ocidente como parâmetro absoluto de certo e errado. É só diferente e pronto. Assim como para eles o certo é comer com palitinhos e para nós com talheres, na cultura chinesa o certo é se aliviar assim que a necessidade surgir (parece até que por crenças médicas e espirituais, a conferir).

3) Super barulho ao comer e ao usar o telefone
Sim, mas pare!, não estão fazendo para te irritar. Assim que cheguei ficava encarando para ver se eles se tocavam. Aí me olhavam de volta com cara de “que foi, minha filha?”, sinceramente sem entender qual o problema. Desde então quem se tocou fui eu.

4) Poluição
Está aqui, principalmente no ar nevoado, mas as cidades não são sujas nem têm cheiro ruim. Inclusive as pessoas pescam e nadam nos rios e lagos e as lixeiras públicas costumam ter divisão para reciclados.

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Pescaria no centro de Pequim

5) Furação de fila
Essa é complicada, porque quando afeta o próximo fica difícil justificar com tradições e costumes. Mas vamos lá. Não são poucos os países desenvolvidos onde vi gente fazendo isso na maior cara de pau, tampouco a prática está erradicada no Brasil. E se alguém está furando, é porque alguém está formando a fila. Um dia perguntei para uma chinesa se eles não se incomodam com isso. Ela disse que muita gente acaba ficando quieta para evitar briga, ou seja, uma calma e paciência que não temos.

6) Homens sem camiseta ou com a pança para fora (inclusive em lugares fechados)
Engraçado, gente.

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Restaurante em Pequim

7) Cigarro
Dureza. Fumam muito, nos restaurantes, trens, ônibus fechados, ruas tumultuadas. Em alguns poucos lugares estão proibindo, mas pelo jeito vai demorar a pegar, se pegar.

8) Overdose de fofura
A principal crítica que ouvi de ocidentais que moram aqui, convivendo suficientemente para sair de primeiras impressões: os chineses são tão solícitos que às vezes passam do ponto. Uma pessoa começou a fugir de casa para evitar vizinhos ultraparticipativos.


Coisas chinesas legais

1) Caricaturas e bichinhos fofinhos para todas as ocasiões: turísmo, polícia, metrô (foto).

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2) Idosos em solo trip pelo país se hospedam nos albergues/dormitórios junto com a moçada, que interage com eles de igual para igual.

3) Casais e famílias com a mesma roupa.

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4) Os pratos são divididos entre todos. Mais variedade e menos mesquinharia.

5) Lojas de doces artesanais com zoológico humano dos confeiteiros.

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6) Namorados carregam bolsa das namoradas.

7) Dedinhos nas fotos – e muitas fotos.

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8) Conceito de moda tão pertinentemente elástico que permite chifrinho piscante em caminhadas vespertinas pelo distrito financeiro da cidade (desculpem a ausência de foto).

9) Bilhetes como esse.

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10) Papelarias têm serviços de caixas postais para o futuro. Tipo 2020 e adiante.

11) Danças e atividades físico-recreativas em espaços públicos like nobody is watching (mais uma da Mundolândia Productions).


Sinceramente

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Tem dias que 20 horas com a bunda na cadeira do trem não são aventura, só estafa mesmo. E esperar pelo motorista do hotel que não chega deixa de ser mais um dos zilhões de imprevistos cômicos. Significa se virar com o trambolho nas costas, ardendo não se sabe se do calor do meio dia ou da febre que não passa.

Tem horas que viajar quando 1,4 bilhão saem de férias deixa de ser experiência antropológica para exaurir o mais paciente dos cristãos, com filas intermináveis, lugares esgotados, gente espremida tossindo na sua cara. Significa ter que esperar 10 horas o trem atrasado dormindo no chão (porque nas cadeiras de espera também não tem lugar).

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Às vezes estar sozinha deixa de ser intrepidez para ser solidão. O diferente irrita. A mímica não funciona. A comida não desce. O próximo destino é mais um.

Às vezes, a estrada fica longa para as pernas curtas.

Como tudo na vida, viajar também tem dessas (sempre desconfiei de soluções e de pessoas 100% felizes). Eu gosto assim, e do prazer de redescobrir o mundo bom no dia seguinte.

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No stopping, humans