Resumão Mundolândia

O tempo passa e até as descobertas diárias, tão inéditas, viram rotina. Na combinação entre correria de um lugar para outro + acesso limitado à internet rápida + divisão do tempo livre entre o planejamento dos próximos passos/falar com a família e amigos antigos/entrosar com os novos amigos, algumas coisas legais acabaram ficando pelo caminho.

Me redimo agora com um resumão dos momentos imperdíveis das últimas semanas.

1)   Ama à árvore como a ti mesmo

Lago sacro para os bishnois

Lago sacro para os bishnois

Você, defensor dos animais e da natureza, pode ter abdicado bravamente dos prazeres da carne, mas daria sua vida por uma árvore? Pois aqui na Índia isso já aconteceu não uma, mas 363 vezes. O povo Bishnoi vive em pequenas vilas perto de Jodhpur e é conhecido por interferir minimamente na natureza.  Contrariando os costumes hindus, as famílias preferem não cremar os cadáveres para não usar lenha. Também não usam tecido de cor azul, pois isso significa que foi preciso maltratar uma planta para obter o índigo artesanalmente.

Aí que no Século 18, o manda-chuva local achou que devia cortar umas árvores na área dos bishnois para construir seu palácio. Uma mulher da comunidade se colocou entre os soldados e a floresta, dizendo que primeiro teriam de cortar a cabeça dela – o que não hesitaram em fazer. As filhas tiveram a mesma reação, assim como mais de 300 habitantes do vilarejo. Quando a matança chegou aos ouvidos do rei, virou uma comoção só e ele declarou a área toda intocável e santa. Se o bloqueio está funcionando plenamente não sei, mas um astro famosíssimo do cinema indiano está enrolado na Justiça há anos porque inventou de caçar um animal sagrado na área dos bishnois.

2)  Luxo e lixo lado a lado

O que sempre ouvia antes de chegar a Udaipur era: “Nem parece a Índia” – observação parcialmente correta. A cidade é um deleite para os olhos, com palácios e resorts de 1.200 reais a diária rodeando lagos cobertos por uma bruma cênica, algo entre Veneza e a Lagoa Rodrigo de Freitas. O luxo é tão convincente que Udaipur foi uma das locações do décimo terceiro filme da saga James Bond, Octopussy (1983), estrelado por Roger Moore.

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Mas ó, nem precisa sair da área “nobre” dos lagos para ver a Udaipur da vida real. Só precisa treinar os olhos para mirar o que não reluz.

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3)   Tabu reverso

Segundo sabemos deste mundo, o tempo é o maior diluidor de tabus, transformando o chocante em corriqueiro. Mas na Índia esse conceito é relativo, ao menos quando olhamos para os templos de Khajuraho. Construído nos séculos 10 e 11 pela comunidade Chandela, o complexo tem construções incríveis com esculturas em relevo mostrando detalhes dos costumes da época: adoração aos deuses hindus, vida na corte, guerras, brigas de elefantes, apresentação de músicos e dançarinos e… sexo, em cenas orgíricas de fazer corar os desprevenidos (cavalo incluso).

Isso no país onde mal se vê casais de mãos dadas nas ruas hoje em dia.

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p.s.1)  Os álbuns completos de Jodhpur, Udaipur e Khajuraho estão no Flickr, na coluna aqui à direita.

p.s.2) Já estou na parte leste da Índia, rumando para o sul dentro de poucos dias. Esqueceu o link para acompanhar as andanças no mapa? Olha ele aqui!


Estilo indiano: 5 curiosidades

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1) Proud Ronald men

Padrão é ótimo porque ele só significa alguma coisa para quem o segue. E aqui, regozijo ao perceber que muitos homens não estão nem aí para a ditadura da beleza ocidental que crucifica os tonalizantes masculinos. Coisa mais fácil na Índia é achar senhores ostentando, orgulhosos, cabelos e barbas com tons entre o vermelho Ronald e o laranja cenoura (resultado do uso da hena). Aliás, muito mais senhores que senhoras cuidando da cabeleira, diga-se de passagem.

2) Mulheres divas

Ainda no quesito danem-se os padrões ocidentais, é muito interessante perceber que as roupas típicas indianas são a maior opção entre as mulheres de todas as idades. Não importa se estão trabalhando no meio da roça, enfiadas no lixo ou deitadas no chão da estação de trem: o glamour se sustenta nos saris e conjuntos coloridíssimos em tecidos leves, muitas vezes bordados em dourado e prateado. Isso sem falar na enorme quantidade de acessórios igualmente coloridos e brilhantes: dezenas de pulseiras nos braços, brincões, piercing no nariz para todas as idades e de todos os tamanhos, pintura corporal de hena, adesivos na testa, etc. Lindas, lindas

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3) Afeto masculino

Os paulistanos sem noção que adoram bater em homens abraçados na rua deveriam cumprir medida socioeducativa de um ano por aqui. Embora a tradição indiana seja restritiva com o carinho público entre casais, o mesmo não vale para homens: corriqueiro ver garotos, jovens, homens e senhores abraçados ou de mãos dadas caminhando por aí. Segundo perguntei, é a forma natural de demonstrar carinho entre amigos e familiares. Ah, e também ia ser bom para quem tem preconceito contra homem usando brinco: aqui eles usam até de florzinha, nas duas orelhas, coisa mais supimpa do mundo.

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4) Branqueamento sem vergonha

Eu tenho para mim que a televisão é o termômetro dos anseios de uma sociedade. Se está passando a propaganda ali, dois motivos explicam: ou porque já vende muito, ou porque tem muito potencial de venda. E por aqui, um dos maiores hits são os cremes para branqueamento masculinos e femininos, em anúncios que fariam tremer os ativistas do orgulho racial. Geralmente a historinha é alguém que está se dando mal, começa a usar o creme (animação mostra o resultado em escalas de branco) e plim, tudo na vida se resolve. No máximo, vem um eufemismo que o creme serve para tirar os efeitos “da poeira, da poluição e do sol”.

5) Eles se amam, afinal

Lendo o item acima você imagina: nossa, eles devem ter um grande complexo de inferioridade. Será? Ainda considerando televisão/cinema como termômetros sociais, é incrível a quantidade de programação local que eles consomem. Clipes, seriados, filmes, tudo é daqui. Enquanto as televisões pagas choram as pitangas no Brasil para amolecer um sistema de cotas mínimas de programação nacional, aqui foi uma luta para achar um (1) canal que exibe conteúdo norteamericano. Um dia, quando assistia a um canal de clipes no Punjab, essa metáfora ficou bem clara. A cena começava em uma balada com Beyoncé bombando forte. Aí chegava a cantora indiana e trocava para a música dela, no melhor estilo “sai filha, quem manda aqui sou eu”. Fim.


O resort mais estrelado do mundo

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Cheguei ao meu extremo oeste da Índia, onde encontrei Jaisalmer. Poderia falar do charme da cidade que ganhou o apelido de dourada, mas na verdade é amarela. Poderia falar da importância histórica como entreposto comercial rumo à Ásia Central nos tempos antigos, e também do atualíssimo significado geopolítico no eterno climão com o Paquistão.

Poderia falar do único forte que conheci tão ou mais vivo que na época da construção, no Século 12. Lojistas e moradores estão em cada ruazinha labiríntica da cidadela murada, tentando chamar a atenção dos turistas como podem. Já viu um castelo/palácio/forte todo formal em seu tombamento e pensou: “Como deveria ser isso nos tempos áureos?”. Pois em Jaisalmer tudo continua assim, bem áureo, bem dourado.

Mas o destaque deste post não está exatamente em Jaisalmer, e sim no seu vizinho – acredito eu, responsável por influenciar diretamente tudo que diz respeito à cidade: o deserto de Thar.

Nos últimos dois dias, passei por incontáveis paisagens do lugar famoso pelas secas que podem durar até sete anos, mas desta vez relativamente vivo e verde, resultado das chuvas que caíram em agosto último. A visão limpa dos cenários a desbravar favorecida pela companhia do líder entre os camelos do grupo – que não hesitou em morder a perna do rebelde que ousou ultrapassá-lo.

Ali fiz amizade com o guia que diz ter 25, mas aparenta 40, cujos maiores orgulhos são o bigode estilo marajá nunca raspado e jogar polo (de camelo, claro) contra o time do exército uma vez por ano. Sempre puxando uma música esganiçada pelo caminho, riu de mostrar todos os dentes quando eu disse que no Brasil poderíamos formar uma dupla sertaneja, Del Boy e Débora. Ele diz rezar todos os dias para conseguir dinheiro e viajar pela Índia. É o seu maior sonho.

Ali conheci os meninos ajudantes que acreditam ter um futuro mais promissor se deixarem de ir à escola para aprender como levar turistas e seus dólares/euros para o deserto.

Ali ajudei a cozinhar e a fazer pão numa fogueirinha improvisada no chão. Para quem me conhece, inusitado é pouco.

Ali brinquei com um cabritinho que havia nascido há uma hora, ainda tentando dar os primeiros passos com as perninhas tronchas.

Ali vimos o sol descer como uma laranja pelas dunas.

Ali esticamos nossas cobertas sobre a areia fina, acima de nós apenas o céu. Sempre que estava quase pegando no sono, acordava sobressaltada tentando não perder um segundo daquela visão celestial, redundando entre o literal e o poético.

Aos meus amigos que adoram os cinco estrelas, me desculpem… prefiro a companhia de milhões delas.

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Pushkar delirium

IMG_2256A primeira vez que soube de Pushkar foi pelo blog da Rachel e do Marco. E desde que li este post aqui, a feira anual que acontece por lá virou destino dos sonhos. Como resistir à mistura entre o furdunço típico de exposições agropecuárias (Fernandópolis <3) e o indian way of life? Só vendo.

Primeiramente, Pushkar em si já vale a visita. Cidadezinha de cerca de 15 mil habitantes encrustada no efusivo estado do Rajastão, é daquelas que dá para fazer tudo a pé. Fica instalada confortavelmente entre morros, dunas arenosas e um lago, considerado super sagrado pelos hindus. Segundo consta, Pushkar é o único lugar da Índia com um templo dedicado ao deus Brahma, que juntamente com Shiva e Vishnu, formam a santíssima trindade do hinduísmo.

Então que aqui já é um lugar de forte peregrinação religiosa para os indianos. Aí tem a peregrinação dos gringos mochileiros da cannabis (que aqui é meio que liberada). Eles fazem uma escala especial para provar o famigerado bhang lassi, literalmente, iogurte de maconha (faça uma rápida busca no Google para entender do que eu estou falando). Tem também os outros turistas ocidentais que vêm só pelo charme da cidade mesmo.

Mas aí tem a feira em meados de novembro, e bem, Pushkar vira uma mistura de tudo que você imaginou e não imaginou ver um dia.

Basicamente, milhares de comerciantes de gado, búfalos, ovelhas, cavalos e camelos de todo o país desembocam na cidade para trocas comerciais. Diferentemente das nossas assépticas feiras agropecuárias, eles se instalam em tendas espalhadas por um enorme espaço arenoso nas cercanias da cidade. Ficam lá meio nômades, junto de seus animais, que andam semi-soltos por todos os lados. Diferentemente das nossas burocráticas feiras, aqui parece que não tem muita frescura não: chegou, vai expondo e vendendo. Oferta e procura estão mais que suficientes para regular qualquer coisa que seja.

Aí que esse movimento acaba atraindo muitos outros movimentos, como expositores que vendem de jogo de canecas de vidro a brinquedos estranhos, de batidas sem álcool (aqui é proibido) a tratores, de calças jeans a uma nova fé. E tem vários parques de diversões (quatro rodas gigantes, gente), com shows de mágica bisonhos, globo da morte que não é globo, brinquedos puxados por tração humana, crianças pintadas como deuses hindus pedindo esmola.

E tem competições loucas como a do melhor bigode ou de qual estrangeira é a melhor noiva indiana. E tem artistas mambembes exibindo truques que despertariam ira nos protetores de crianças, macacos e cobras, no estádio cuja principal regra é não ter regra nenhuma. Tudo entre incontáveis excursões de idosos ocidentais montados em camelos com pompons coloridos, balançando para lá e para cá enquanto disparam suas câmeras sem parar.

Fiquei enfurnada nesse fuzuê por três dias, andando ao sabor da poeira, olhões ainda mais arregalados para absorver a overdose de informações. E olha, não precisou nem de bhang lassi para me sentir em outro planeta, viu.


Índia para mulheres

Ia fazer esse post quando estivesse de saída, com a certeza de que tudo correu bem. Mas considerando a quantidade de meninas angustiadas me perguntado sobre o assunto, resolvi adiantar para ajudar no que der.

Quando vim para a Índia, estava tão alarmada com as notícias ruins envolvendo mulheres que até esqueci de ligar o filtro do bom senso para hard news. Porque né, nós jornalistas sabemos mais que ninguém como desgraça vende jornal e como nada é tão ruim quanto parece.

Resumindo, é claro que as mulheres vivem em situação de risco aqui. Mas, na minha opinião, essas violações acabam ganhando ainda mais repercussão porque, diferentemente do Brasil, a Índia não é um país violento. Aqui as pessoas não andam com medo de assalto, sequestro, assassinato. As pessoas não levam tiro à toa na rua. Por isso, acho que estupro aqui choca muito mais que estupro no Brasil. Aliás, estupro no Brasil nem é notícia mais (só se for seguido de morte, e olhe lá).

Pelo que estou percebendo, a situação das estrangeiras é até light: o tranco mesmo é com as mulheres indianas. Ao mesmo tempo que são cobradas como as filhas/irmãs/mulheres perfeitas, com dedicação intensa às famílias, também precisam enfrentar as agruras do mundo moderno. E ainda hoje são preteridas pelos homens da casa, que são o “investimento”, enquanto criar uma mulher é ”regar o jardim do vizinho”, como bem pontuou a jornalista Florência Costa no livro Os Indianos. Detalhe: elas também são assediadas, como muitas já me disseram, só que acabam ficando quietas por vergonha ou para não piorar a situação.

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Meu look bisonho na Feira de Camelos de Pushkar, mas o importante é que funciona (tentei sem a echarpe no rosto, só com os óculos e o boné, e automaticamente quatro homens juntaram em volta).

Quanto a nós, estrangeiras, primeiramente temos que entender que os indianos adoram turistas, homens e mulheres. Então o principal assédio, na maioria das vezes, varia entre a simples curiosidade e o interesse de vender alguma coisa. Já o assédio mal intencionado pode ser minimizado com alguns cuidados simples, especialmente para quem está sozinha. Pelo menos comigo tem funcionado bem.

1)   Você já é visada por vir de fora, mulher ou não, então seu principal objetivo é reduzir o foco de atenção. Use roupas de cores neutras, que deixem o corpo disforme e que não mostrem a pele. Preferencialmente, arremate com boné (com cabelo em coque para dentro), óculos de sol (para não repararem para onde você está olhando) e echarpe.

2)   Em geral, a melhor forma de usar a echarpe é cobrindo o busto. Mas quando o lugar é mais complicado ou se já escureceu, uma ótima solução é cobrir o rosto todo, tipo uma balaclava. Fique tranquila, você não vai ser um ET, embora fique parecido com um – muitos se vestem assim para evitar inalação de poeira. E a invisibilidade é mágica e instantânea (também é o melhor remédio quando você não quer ser incomodada como turista).

3)   Embora seja muito injusta com a grande maioria dos indianos de bem, criei uma regra prática: papo com desconhecidos só com famílias, casais, mulheres e crianças. Se precisar de informações e não encontrar ninguém desse grupo, vá até as autoridades e funcionários públicos, e em última instância, vendedores de estabelecimentos mais respeitados.

4)   Procure sempre estar perto de pessoas do grupo acima, seja na rua, no trem ou no ônibus (vale pedir para o cobrador te vender uma passagem mais perto do motorista). Evite desbravar sozinha lugares ermos ou de evidente predominância masculina.

5)   Se algum homem insistir em se aproximar emparelhando na rua, como muitos fazem, finja que não entende a língua e saia andando. Se for muito insistente, especialmente para fotos, apele para a aliança falsa: diga que não pode porque é casada, funciona na maioria das vezes. Se não der certo, ande em direção a um grupo ou a uma loja e erga o tom de voz. Em geral, esses caras são covardes e saem de fininho.

6) Faça reserva nos albergues/hoteis com antecedência de pelo menos uma cidade, e contrate o serviço que a maioria oferece de buscar no aeroporto ou nas estações de trem ou de ônibus (principalmente se estiver chegando à noite).

7)   Mesmo que fique pouco tempo, considere fortemente a ideia de comprar um chip indiano com pacote de dados, que te dará acesso móvel ao abençoado Google Maps. A tranquilidade de saber o caminho certo sem precisar perguntar nem confiar totalmente nos taxistas vale infinitamente mais que R$ 32. Ah, e embora os vendedores digam que pode levar 48 horas para o chip funcionar, o meu pré-pago, da Vodafone, foi acionado minutos depois da compra, tudo bem rápido e prático. Só precisa levar cópia do passaporte, do visto e uma foto.

8) Ainda sobre mapas: estude todos os lugares e caminhos por onde você pretende passar antes de sair do hotel. Andar na rua com cara de perdida e com o mapa/guia aberto é uma ótima deixa para ser abordada por pessoas indesejadas.

9) Eles vão perguntar sempre (muitas vezes só por curiosidade mesmo), mas nunca diga a um estranho que está sozinha. Falar que seu marido/amigos estão te esperando no hotel é uma boa saída.

10)   Você já não anda sozinha à noite no Brasil, certo? Aqui, o mesmo. Simples assim.


Índia para leigos

Se você gostaria de visitar o país motivado por fotos incríveis ou ideias pré-concebidas, reflita sobre as seguintes considerações. Só para garantir. Porque né, eles estão bem felizes aqui e é você quem está chegando, então só vale a pena se for bom para todo mundo.

Resumindo, considere a Índia como destino se você…

…gosta de gente. Muita, mas muita gente, passando de pequenas aglomerações ao caos completo esmagador de pessoas. Se você é do povo e está mais para pista do forrobodó que para rei do camarote, aqui é o seu lugar.

…não se incomoda com poluição de qualquer espécie (visual, sonora, olfativa) ou com condições duvidosas de higiene. Lixo por aqui é mato, cresce por todo lado. Se você acha que São Paulo é o seu limite, por favor, repense.

…não tem frescura. A não ser que você planeje meticulosamente uma (chata) viagem pela Índia dentro de uma bolha ocidental, vai cair em hotéis que clamam por reforma e faxina, ônibus e trens caindo aos pedaços, todo tipo de animal no meio da rua (porcos, vacas, cabras, cachorros, gatos, ratos, etc), banheiros turcos (aquele de agachar), banhos de balde. E por aí vai.

…passa batido com as necessidades fisiológicas alheias. Fazer xixi (às vezes cocô), arrotar, catarrar, cuspir e assoar o nariz no chão são eventos públicos por aqui. Não ali meio escondido não, é bem do seu lado mesmo.

Dar um tapa na dentadura também é evento público por aqui.

Dar um tapa na dentadura também é evento público por aqui.

…mantém a cuca fresca quando tentam te passar para trás. Acontece desde o preço inflacionado para turistas, que exige uma persistente barganha cotidiana, até níveis avançados de trapaça, com gente disposta a inventar todo tipo de mentira para tirar seu dinheiro.

…aceita a insignificância de ser pedestre em um trânsito alucinante. Se você é defensor ferrenho dos direitos dos mais frágeis no ecossistema das ruas, pode esquecer. Aqui pedestre é pior que vaca, pois elas pelo menos param o fluxo ao atravessar. Na Índia, coisa dificílima é achar uma calçada, a faixa de pedestres não funciona (e nem o sinal vermelho, às vezes). O jeito é se jogar na rua e seja o que Deus quiser, com uma sonora buzina sempre na orelha.

…topa jogar conforme as regras. Quer aproveitar os passeios para namorar bastante? Quer tirar as alcinhas decotadas e shortinhos do armário para variar o guarda-roupa de escritório? Desculpa, a Índia não serve. Inegável que as coisas estão mudando, mas enquanto isso, na minha modesta opinião, não cabe a quem é de fora enfiar uma cultura estranha goela abaixo. Lembrando que aqui os casais mal andam de mãos dadas.

…adora ser abordado por desconhecidos. Para tirar fotos, para comprar coisas, para falar inglês, para esmolas, para corridas de rickshaw… É impossível passar incólume a cinco minutos em uma rua indiana, senhor estrangeiro.

…não se deprime com a miséria, embora fique tocado por ela. Aqui a pobreza absoluta está por toda parte, lembrança dolorida (e necessária) de que não existe realização plena enquanto o mundo continuar assim.


Trem indiano

Em comemoração ao meu primeiro mês em solo indiano, um vídeo gravado no meu vagão nesta manhã (três horas de viagem).

Com carinho,

Débora


Fuga ao paraíso dos pássaros

Vista ampla do parque, pelo mirante aéreo

Vista ampla do parque, pelo mirante aéreo

James, o fotografo sul-africano que buscava leopardos da neve no Ladakh, falou uma coisa que ficou marcada: quando você faz um safari pela primeira vez, é impossível parar.  A sensação de estar com os animais soltos no habitat deles desperta um instinto primitivo que nos faz sentir automaticamente integrados naquilo, explicou.

Hoje eu entendi o que ele quis dizer. Embora esteja mais ligada em concentrações urbanas/humanas nesta viagem, achei que seria uma pena passar tão perto de Bharatpur e não conferir o famoso santuário de pássaros da cidade. O guia descreve o passeio como “um santuário que até não ornitólogos precisam ver” e lembra que muitos visitantes destacam o lugar como ponto alto da viagem à Índia.

E olha, é difícil imaginar que isso tudo está ali, bem na beira da confusão da cidade. A infraestrutura do parque é supreendentemente boa, e é possível alugar uma bicicleta por pouco menos de R$ 2 para passar seis horas explorando as redondezas. Por ter dispensado o guia e os binóculos, fiquei com medo de não ver os animais, mas isso é impossível: eles estão por toda parte.

A estrada principal que corta o santuário é asfaltada e plana. Logo nas primeiras pedaladas, me senti entrando naquele desenho animado Rio: pássaros de várias espécies, voando e cantando juntos, uma lindeza só. E depois antílopes, porcos selvagens, cobras, tartarugas de casca mole, mini-esquilos, lagartos, veados… Tudo ali na beirinha da estrada, em cenários alagadiços incríveis que lembram o nosso Pantanal.

Depois de hoje, zoológico nunca mais.

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p.s.1: o álbum já está no Flickr!

p.s.: para quem me conhece e achou estranha essa história de bicicleta, adianto que caí, mas só uma vez. Porque a espertona já sabe manejar bem, aí inventa de pegar a máquina do bolso com a bicicleta em movimento. Tá de parabéns.


TAJ TAJ TAJ

Nesses 20 e tantos anos, posso dizer que já tive a sorte (às vezes o azar) de me apaixonar algumas vezes. Mas hoje as coisas chegaram a um novo estágio entre os envolvimentos emocionais possíveis e impossíveis. Pela primeira vez senti palpitações românticas por um lugar, e o responsável foi o irresistível Taj Mahal.

Mesmo com toda pompa que ronda seu status de maravilha arquitetônica mundial, nunca tive muito interesse por ele (tenho certo preconceito com mausoléus). Mas quando o vi de longe, reluzindo sua brancura suave entre as formas escuras do primeiro portal do complexo, fui tomada por reações piegas que só cabem nos amores à primeira vista.

Já me comovi em certos lugares pelo significado e pela história que eles trazem, mas essa é a primeira vez que sinto um arroubo estético por uma fachada. Pelas cinco horas seguintes, não consegui tirar os olhos das formas curvas em mármore branco decorado com finos desenhos em pedras semipreciosas.

Me perguntei se os arquitetos tinham plena ciência de que estavam dando vida ao paradoxo impossível entre o grandioso e o delicado, ou se no final ficaram tão maravilhados quanto todos nós. Mais verossímil seria se tivesse uma placa do lado explicando que o layout veio descarregado diretamente do céu, cenário de fundo onde o Taj fica tão bem integrado.

Passei o dia perambulando por todos os lados, e a cada novo ângulo, um novo baque. “Mas como pode isso agora se ali atrás já estava perfeito?”. E mais uma foto. E mais centenas de fotos, justamente eu, tão econômica com imagens. Mas que fique claro, nenhuma capaz de repassar o que é estar com ele ao vivo, envolvido na leve bruma do rio Yamuna neste fim de tarde de outono. (suspiro).

E a despedida? Fiquei com dor no coração, DOR NO CORAÇÃO, por precisar ir embora (mais tarde soube que essa reação é comum em várias pessoas, menos mal). Adiei enquanto pude, pensando se poderia ter um jeito de quem sabe voltar amanhã, quem sabe ficar um pouco mais, quem sabe alguma solução para que aquilo fosse só um até breve.

Quando vierem, lembrem-se de mim, que eu volto também.


Índia para os fortes

Comemorando com os sikhs

Comemorando com os sikhs

Fui atropelada por Amritsar.

Cidade mais pulsante do Punjab, ela consegue ser uma Índia ainda mais frenética. Língua, música, estilo e cultura são próprios da região, com um quê meio árabe, quem sabe lembrando que o Paquistão está logo ali do lado. Desavisada, minha energia foi para o ralo sem chance de defesa.

A cidade é a casa do incrível Templo Dourado e capital espiritual da religião sikh. A crença surgiu no Século 15, pregando a fé em um Deus único e nos ensinamentos professados por seus gurus. Sabe aqueles homens de olhar incisivo, turbante, barba e bracelete prateado, às vezes com uma faca ou espada pendurados na cintura? São os sikhs. No museu local, a vocação marcial é explicada em centenas de pinturas sanguinolentas que retratam mártires e heróis encrencados por não abdicarem de suas crenças.

Um dos maiores pilares da fé sikh, a igualdade entre os seres humanos tem sua maior síntese nas enormes cozinhas dos templos. Elas servem gratuitamente todos aqueles dispostos a se sentarem no chão, dividindo fileiras com esfarrapados e donos de celulares de última geração. Daquelas coisas que não tem como explicar, só se unindo aos milhares que passam por ali todos os dias para entender.

Além da enorme carga religiosa que atrai fieis de todas as partes do mundo (ou até por causa disso), Amritsar é um caldeirão de gente que empurra, que esbarra, que buzina, que pedala, que vende e que cozinha no meio das ruas sem calçadas. É o caos no caos, e nem as noites são poupadas.

Para convulsionar ainda mais, cheguei no meio de um evento adorado pelos hindus, o Diwali. O Festival das Luzes também tem um sentido especial para os sikhs, que se amontoaram no Templo Dourado no último domingo para ver a queima de fogos. Os estouros começaram às 18h30 e terminaram madrugada adentro pelas ruas da cidade, como se Amritsar já não fosse o bastante.