Índia para mulheres
Publicado; 14/11/2013 Arquivado em: Índia 16 ComentáriosIa fazer esse post quando estivesse de saída, com a certeza de que tudo correu bem. Mas considerando a quantidade de meninas angustiadas me perguntado sobre o assunto, resolvi adiantar para ajudar no que der.
Quando vim para a Índia, estava tão alarmada com as notícias ruins envolvendo mulheres que até esqueci de ligar o filtro do bom senso para hard news. Porque né, nós jornalistas sabemos mais que ninguém como desgraça vende jornal e como nada é tão ruim quanto parece.
Resumindo, é claro que as mulheres vivem em situação de risco aqui. Mas, na minha opinião, essas violações acabam ganhando ainda mais repercussão porque, diferentemente do Brasil, a Índia não é um país violento. Aqui as pessoas não andam com medo de assalto, sequestro, assassinato. As pessoas não levam tiro à toa na rua. Por isso, acho que estupro aqui choca muito mais que estupro no Brasil. Aliás, estupro no Brasil nem é notícia mais (só se for seguido de morte, e olhe lá).
Pelo que estou percebendo, a situação das estrangeiras é até light: o tranco mesmo é com as mulheres indianas. Ao mesmo tempo que são cobradas como as filhas/irmãs/mulheres perfeitas, com dedicação intensa às famílias, também precisam enfrentar as agruras do mundo moderno. E ainda hoje são preteridas pelos homens da casa, que são o “investimento”, enquanto criar uma mulher é ”regar o jardim do vizinho”, como bem pontuou a jornalista Florência Costa no livro Os Indianos. Detalhe: elas também são assediadas, como muitas já me disseram, só que acabam ficando quietas por vergonha ou para não piorar a situação.

Meu look bisonho na Feira de Camelos de Pushkar, mas o importante é que funciona (tentei sem a echarpe no rosto, só com os óculos e o boné, e automaticamente quatro homens juntaram em volta).
Quanto a nós, estrangeiras, primeiramente temos que entender que os indianos adoram turistas, homens e mulheres. Então o principal assédio, na maioria das vezes, varia entre a simples curiosidade e o interesse de vender alguma coisa. Já o assédio mal intencionado pode ser minimizado com alguns cuidados simples, especialmente para quem está sozinha. Pelo menos comigo tem funcionado bem.
1) Você já é visada por vir de fora, mulher ou não, então seu principal objetivo é reduzir o foco de atenção. Use roupas de cores neutras, que deixem o corpo disforme e que não mostrem a pele. Preferencialmente, arremate com boné (com cabelo em coque para dentro), óculos de sol (para não repararem para onde você está olhando) e echarpe.
2) Em geral, a melhor forma de usar a echarpe é cobrindo o busto. Mas quando o lugar é mais complicado ou se já escureceu, uma ótima solução é cobrir o rosto todo, tipo uma balaclava. Fique tranquila, você não vai ser um ET, embora fique parecido com um – muitos se vestem assim para evitar inalação de poeira. E a invisibilidade é mágica e instantânea (também é o melhor remédio quando você não quer ser incomodada como turista).
3) Embora seja muito injusta com a grande maioria dos indianos de bem, criei uma regra prática: papo com desconhecidos só com famílias, casais, mulheres e crianças. Se precisar de informações e não encontrar ninguém desse grupo, vá até as autoridades e funcionários públicos, e em última instância, vendedores de estabelecimentos mais respeitados.
4) Procure sempre estar perto de pessoas do grupo acima, seja na rua, no trem ou no ônibus (vale pedir para o cobrador te vender uma passagem mais perto do motorista). Evite desbravar sozinha lugares ermos ou de evidente predominância masculina.
5) Se algum homem insistir em se aproximar emparelhando na rua, como muitos fazem, finja que não entende a língua e saia andando. Se for muito insistente, especialmente para fotos, apele para a aliança falsa: diga que não pode porque é casada, funciona na maioria das vezes. Se não der certo, ande em direção a um grupo ou a uma loja e erga o tom de voz. Em geral, esses caras são covardes e saem de fininho.
6) Faça reserva nos albergues/hoteis com antecedência de pelo menos uma cidade, e contrate o serviço que a maioria oferece de buscar no aeroporto ou nas estações de trem ou de ônibus (principalmente se estiver chegando à noite).
7) Mesmo que fique pouco tempo, considere fortemente a ideia de comprar um chip indiano com pacote de dados, que te dará acesso móvel ao abençoado Google Maps. A tranquilidade de saber o caminho certo sem precisar perguntar nem confiar totalmente nos taxistas vale infinitamente mais que R$ 32. Ah, e embora os vendedores digam que pode levar 48 horas para o chip funcionar, o meu pré-pago, da Vodafone, foi acionado minutos depois da compra, tudo bem rápido e prático. Só precisa levar cópia do passaporte, do visto e uma foto.
8) Ainda sobre mapas: estude todos os lugares e caminhos por onde você pretende passar antes de sair do hotel. Andar na rua com cara de perdida e com o mapa/guia aberto é uma ótima deixa para ser abordada por pessoas indesejadas.
9) Eles vão perguntar sempre (muitas vezes só por curiosidade mesmo), mas nunca diga a um estranho que está sozinha. Falar que seu marido/amigos estão te esperando no hotel é uma boa saída.
10) Você já não anda sozinha à noite no Brasil, certo? Aqui, o mesmo. Simples assim.
Índia para leigos
Publicado; 12/11/2013 Arquivado em: Índia 18 ComentáriosSe você gostaria de visitar o país motivado por fotos incríveis ou ideias pré-concebidas, reflita sobre as seguintes considerações. Só para garantir. Porque né, eles estão bem felizes aqui e é você quem está chegando, então só vale a pena se for bom para todo mundo.
Resumindo, considere a Índia como destino se você…
…gosta de gente. Muita, mas muita gente, passando de pequenas aglomerações ao caos completo esmagador de pessoas. Se você é do povo e está mais para pista do forrobodó que para rei do camarote, aqui é o seu lugar.
…não se incomoda com poluição de qualquer espécie (visual, sonora, olfativa) ou com condições duvidosas de higiene. Lixo por aqui é mato, cresce por todo lado. Se você acha que São Paulo é o seu limite, por favor, repense.
…não tem frescura. A não ser que você planeje meticulosamente uma (chata) viagem pela Índia dentro de uma bolha ocidental, vai cair em hotéis que clamam por reforma e faxina, ônibus e trens caindo aos pedaços, todo tipo de animal no meio da rua (porcos, vacas, cabras, cachorros, gatos, ratos, etc), banheiros turcos (aquele de agachar), banhos de balde. E por aí vai.
…passa batido com as necessidades fisiológicas alheias. Fazer xixi (às vezes cocô), arrotar, catarrar, cuspir e assoar o nariz no chão são eventos públicos por aqui. Não ali meio escondido não, é bem do seu lado mesmo.
…mantém a cuca fresca quando tentam te passar para trás. Acontece desde o preço inflacionado para turistas, que exige uma persistente barganha cotidiana, até níveis avançados de trapaça, com gente disposta a inventar todo tipo de mentira para tirar seu dinheiro.
…aceita a insignificância de ser pedestre em um trânsito alucinante. Se você é defensor ferrenho dos direitos dos mais frágeis no ecossistema das ruas, pode esquecer. Aqui pedestre é pior que vaca, pois elas pelo menos param o fluxo ao atravessar. Na Índia, coisa dificílima é achar uma calçada, a faixa de pedestres não funciona (e nem o sinal vermelho, às vezes). O jeito é se jogar na rua e seja o que Deus quiser, com uma sonora buzina sempre na orelha.
…topa jogar conforme as regras. Quer aproveitar os passeios para namorar bastante? Quer tirar as alcinhas decotadas e shortinhos do armário para variar o guarda-roupa de escritório? Desculpa, a Índia não serve. Inegável que as coisas estão mudando, mas enquanto isso, na minha modesta opinião, não cabe a quem é de fora enfiar uma cultura estranha goela abaixo. Lembrando que aqui os casais mal andam de mãos dadas.
…adora ser abordado por desconhecidos. Para tirar fotos, para comprar coisas, para falar inglês, para esmolas, para corridas de rickshaw… É impossível passar incólume a cinco minutos em uma rua indiana, senhor estrangeiro.
…não se deprime com a miséria, embora fique tocado por ela. Aqui a pobreza absoluta está por toda parte, lembrança dolorida (e necessária) de que não existe realização plena enquanto o mundo continuar assim.
Trem indiano
Publicado; 10/11/2013 Arquivado em: Índia 8 ComentáriosEm comemoração ao meu primeiro mês em solo indiano, um vídeo gravado no meu vagão nesta manhã (três horas de viagem).
Com carinho,
Débora
Fuga ao paraíso dos pássaros
Publicado; 09/11/2013 Arquivado em: Índia | Tags: Bharatpur, Keoladeo Bird Sanctuary 6 ComentáriosJames, o fotografo sul-africano que buscava leopardos da neve no Ladakh, falou uma coisa que ficou marcada: quando você faz um safari pela primeira vez, é impossível parar. A sensação de estar com os animais soltos no habitat deles desperta um instinto primitivo que nos faz sentir automaticamente integrados naquilo, explicou.
Hoje eu entendi o que ele quis dizer. Embora esteja mais ligada em concentrações urbanas/humanas nesta viagem, achei que seria uma pena passar tão perto de Bharatpur e não conferir o famoso santuário de pássaros da cidade. O guia descreve o passeio como “um santuário que até não ornitólogos precisam ver” e lembra que muitos visitantes destacam o lugar como ponto alto da viagem à Índia.
E olha, é difícil imaginar que isso tudo está ali, bem na beira da confusão da cidade. A infraestrutura do parque é supreendentemente boa, e é possível alugar uma bicicleta por pouco menos de R$ 2 para passar seis horas explorando as redondezas. Por ter dispensado o guia e os binóculos, fiquei com medo de não ver os animais, mas isso é impossível: eles estão por toda parte.
A estrada principal que corta o santuário é asfaltada e plana. Logo nas primeiras pedaladas, me senti entrando naquele desenho animado Rio: pássaros de várias espécies, voando e cantando juntos, uma lindeza só. E depois antílopes, porcos selvagens, cobras, tartarugas de casca mole, mini-esquilos, lagartos, veados… Tudo ali na beirinha da estrada, em cenários alagadiços incríveis que lembram o nosso Pantanal.
Depois de hoje, zoológico nunca mais.
***
p.s.1: o álbum já está no Flickr!
p.s.: para quem me conhece e achou estranha essa história de bicicleta, adianto que caí, mas só uma vez. Porque a espertona já sabe manejar bem, aí inventa de pegar a máquina do bolso com a bicicleta em movimento. Tá de parabéns.
Andança em tempo real
Publicado; 07/11/2013 Arquivado em: Pré-viagem 8 Comentários
Desde que comecei a viagem, muita gente vem pedindo para eu abrir um mapa menos sem vergonha que aquele roteirão por países, indicando o percurso mais detalhado da mochilada.
A boa notícia é que achei como fazer isso. No site Go Pro Travelling, cada cidade inserida corresponde a um número, e basta dar o play no mapa para saber por onde passei (só não entendi porque o programa concebe viagens de longa distância a pé, mas não dá a opção de inserir quando o trajeto é por trem). A ordem das cidades e a data das viagens estão corretas, mas os percursos e os horários não.
A má notícia: minhas limitações tecnológicas não permitem inserir o mapa de forma permanente no blog, vulgo embedar. Então vou deixar o link do itinerário AQUI (guardem para a posteridade, pois vou atualizando sempre!), aguardando a ajuda de algum leitor sabido em info para me ajudar nessa.
p.s.: caso alguém conheça um programa melhor, sou toda ouvidos!
TAJ TAJ TAJ
Publicado; 06/11/2013 Arquivado em: Índia 19 ComentáriosNesses 20 e tantos anos, posso dizer que já tive a sorte (às vezes o azar) de me apaixonar algumas vezes. Mas hoje as coisas chegaram a um novo estágio entre os envolvimentos emocionais possíveis e impossíveis. Pela primeira vez senti palpitações românticas por um lugar, e o responsável foi o irresistível Taj Mahal.
Mesmo com toda pompa que ronda seu status de maravilha arquitetônica mundial, nunca tive muito interesse por ele (tenho certo preconceito com mausoléus). Mas quando o vi de longe, reluzindo sua brancura suave entre as formas escuras do primeiro portal do complexo, fui tomada por reações piegas que só cabem nos amores à primeira vista.
Já me comovi em certos lugares pelo significado e pela história que eles trazem, mas essa é a primeira vez que sinto um arroubo estético por uma fachada. Pelas cinco horas seguintes, não consegui tirar os olhos das formas curvas em mármore branco decorado com finos desenhos em pedras semipreciosas.
Me perguntei se os arquitetos tinham plena ciência de que estavam dando vida ao paradoxo impossível entre o grandioso e o delicado, ou se no final ficaram tão maravilhados quanto todos nós. Mais verossímil seria se tivesse uma placa do lado explicando que o layout veio descarregado diretamente do céu, cenário de fundo onde o Taj fica tão bem integrado.
Passei o dia perambulando por todos os lados, e a cada novo ângulo, um novo baque. “Mas como pode isso agora se ali atrás já estava perfeito?”. E mais uma foto. E mais centenas de fotos, justamente eu, tão econômica com imagens. Mas que fique claro, nenhuma capaz de repassar o que é estar com ele ao vivo, envolvido na leve bruma do rio Yamuna neste fim de tarde de outono. (suspiro).
E a despedida? Fiquei com dor no coração, DOR NO CORAÇÃO, por precisar ir embora (mais tarde soube que essa reação é comum em várias pessoas, menos mal). Adiei enquanto pude, pensando se poderia ter um jeito de quem sabe voltar amanhã, quem sabe ficar um pouco mais, quem sabe alguma solução para que aquilo fosse só um até breve.
Quando vierem, lembrem-se de mim, que eu volto também.
Índia para os fortes
Publicado; 05/11/2013 Arquivado em: Índia | Tags: Amritsar, Diwali, Sikhs 5 ComentáriosFui atropelada por Amritsar.
Cidade mais pulsante do Punjab, ela consegue ser uma Índia ainda mais frenética. Língua, música, estilo e cultura são próprios da região, com um quê meio árabe, quem sabe lembrando que o Paquistão está logo ali do lado. Desavisada, minha energia foi para o ralo sem chance de defesa.
A cidade é a casa do incrível Templo Dourado e capital espiritual da religião sikh. A crença surgiu no Século 15, pregando a fé em um Deus único e nos ensinamentos professados por seus gurus. Sabe aqueles homens de olhar incisivo, turbante, barba e bracelete prateado, às vezes com uma faca ou espada pendurados na cintura? São os sikhs. No museu local, a vocação marcial é explicada em centenas de pinturas sanguinolentas que retratam mártires e heróis encrencados por não abdicarem de suas crenças.
Um dos maiores pilares da fé sikh, a igualdade entre os seres humanos tem sua maior síntese nas enormes cozinhas dos templos. Elas servem gratuitamente todos aqueles dispostos a se sentarem no chão, dividindo fileiras com esfarrapados e donos de celulares de última geração. Daquelas coisas que não tem como explicar, só se unindo aos milhares que passam por ali todos os dias para entender.
Além da enorme carga religiosa que atrai fieis de todas as partes do mundo (ou até por causa disso), Amritsar é um caldeirão de gente que empurra, que esbarra, que buzina, que pedala, que vende e que cozinha no meio das ruas sem calçadas. É o caos no caos, e nem as noites são poupadas.
Para convulsionar ainda mais, cheguei no meio de um evento adorado pelos hindus, o Diwali. O Festival das Luzes também tem um sentido especial para os sikhs, que se amontoaram no Templo Dourado no último domingo para ver a queima de fogos. Os estouros começaram às 18h30 e terminaram madrugada adentro pelas ruas da cidade, como se Amritsar já não fosse o bastante.
Sozinha, parte 2
Publicado; 02/11/2013 Arquivado em: Índia 4 ComentáriosTem a colombiana linda que largou tudo para viver em ashrams na Índia
Tem o nepalês que trabalha na pousada, mas sonha voltar a ser guia de safaris
Tem o dinamarquês que investiu semanas em um estágio sobre assuntos culturais
Tem o francês que veio renovar seu visto chinês para continuar um estágio por lá
Tem dois amigos, um indiano e um inglês, viajando de férias depois de se conhecerem na universidade
Tem a australiana de folga do Médico Sem Fronteiras, planejando ir ao Everest com dois irmãos húngaros
Tem o alemão e o holandês que participavam de reuniões para deslanchar a nova empresa
Tem a brasileira trabalhando em uma empresa indiana com o amigo indiano
Tem a moçadinha animada dos Estados Unidos em um programa da faculdade
Tem o médico alemão que parou de ver sentido em ter dinheiro, mas não ter uma vida
Tem o bartender francês que junta dinheiro na alta temporada para viajar o mundo o resto do ano
Tem o casal de meia idade inglês que fica meio ano na Inglaterra e meio ano no sul da Índia dando aulas de meditação
Tem o fotógrafo sul-africano que viaja o mundo em busca de animais selvagens
Tem o colombiano tatuado que ficou viciado na Índia
Tem o inglês vivendo meses em comunidades isoladas para fazer seu PhD
Tem o rapaz sul-africano que optou por conhecer o mundo antes de administrar o que quer que seja
Tem a enfermeira finlandesa que largou tudo para ser discípula do guru em tempo integral
Tem a americana que veio fazer ioga e se encontrar em projetos sociais
Tem o alemão quarentão querendo saber onde está o verdadeiro Deus
Tem a neozelandesa viajando pelo mundo há nove anos
Tem o senhor francês hiperativo exilado em Bali que veio para uma antiga comunidade hippie
Tem os suíços fazendo um documentário sobre o Tibete
Tem o chinês que apoia a independência do Tibete
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O mais interessante de viajar sozinha por um país como a Índia é que todos os encontros valem a pena. Estar aqui é virar a chave para uma vida de possibilidades.
Meu primeiro encontro com o Dalai Lama
Publicado; 31/10/2013 Arquivado em: Índia | Tags: Dalai Lama, Dharamsala 13 ComentáriosComo todo bom encontro, não foi planejado. A agenda oficial não apontava compromissos, nem indicava onde ele estaria nesta semana. Só quando cheguei a Dharamsala descobri que o governo tibetano em exílio sediava o evento de uma sociedade internacional de cientistas. E que o Dalai Lama era o principal convidado.
O tema do seminário – Compulsões, Desejos e Vícios – era ideal para aprofundar teses do budismo, filosofia que prega o domínio da mente como forma de encontrar Deus em nós mesmos. E foi ali que nos encontramos. Não um encontro propriamente dito, considerando que estávamos a poucos metros de distância, separados por prédios diferentes. Limitadíssimo a pesquisadores e monges, o seminário era retransmitido via telão para centenas de moradores e estrangeiros espalhados por colchonetes em um dos templos do QG tibetano.
O uso do termo His Holiness (Sua Santidade) chega a destoar da simples figura curva, sentada na mesa redonda sem distinção dos demais convidados. Envelopado até o queixo no manto carmim, o Dalai ouvia atentamente a palestra do dia. Balançava a cabeça quando concordava com algo, e vez ou outra pedia auxilio ao tradutor para não perder algum raciocínio importante. Percebi que a idade avançada pouco afetou a expressão dos olhinhos curiosos por trás dos óculos de grau.
O palestrante do dia era o renomado monge de origem francesa Matthieu Ricard, que eu já conhecia de outros carnavais. Ele falava sobre evitar pensamentos compulsivos com o treinamento persistente da mente, dia a dia, emoção a emoção. Está aí uma das coisas que mais gosto no budismo: não basta esperar dádivas do céu, enviadas por um Deus invisível e etéreo. Tudo tem que ser conquistado com esforço e determinação, a partir da autoanálise e da perfeita ciência do funcionamento da nossa mente, aqui e agora.
Em sua principal intervenção, o Dalai destacou que um bom antídoto para combater vícios e desejos é o altruísmo. Segundo ele, as compulsões são muito centradas no eu, e quando mudamos o foco para as necessidades alheias, esses pensamentos perdem força. Entre uma frase e outra, tiradas bem humoradas e sonoras gargalhadas faziam a plateia rir com o coração.
Entre as várias perguntas e respostas da mesa redonda, surge o assunto China. Considerando tudo o que vi e li nesses dias em Dharamsala, escuto incrédula o líder tibetano falando com carinho do país que está quase dizimando seu povo. “Temos que permanecer juntos, somos irmãos”, disse. E a compaixão pura jorrando da sua boca, se embrenhando em nossos corações embrutecidos pela ignorância sobre o sentido do verdadeiro amor incondicional.
Esquizofrenia anglo-indiana
Publicado; 29/10/2013 Arquivado em: Índia | Tags: Shimla 4 ComentáriosSe eu tivesse que chutar qual foi o último lugar onde os ingleses estiveram antes de desocupar a Índia, eu diria Shimla. A sensação é a de que eles acabaram de sair, como uma família que precisa deixar a casa às pressas fugindo de algo. Tudo fica mais ou menos como estava, aquela presença ainda está ali, mas de um jeito meio estranho. Pudera, 1947 foi ontem mesmo.
O ar fresco e as lindas paisagens de pinheiros entre as montanhas em nada lembram o calor sufocante e poeirento das paragens mais ao sul. Não é a toa que os oficiais ingleses vinham para cá de mala e cuia com toda a família durante os tórridos meses do verão indiano.
Carros não entram na Shimla turística, e estar longe das buzinas pela primeira vez em semanas causa um tilt na percepção geográfica. Catarrar no chão, coisa tão natural para ambos os sexos, aqui é proibido. Fumar em qualquer local público: proibido. Fazer xixi na rua, proibido (por incrível que pareça isso é exceção, pois várias cidades têm mictórios estruturados no meio da rua, a coisa mais normal do mundo). Vacas e necessidades de vacas? Não se vê por aqui. De repente por isso o ar puro das montanhas se mantém tão imaculado.
Os prédios são ingleses. As ruas têm nomes ingleses. Jesus voltou a dar as caras em pelo menos três igrejas que achei pelo caminho. As roupas são as mais ocidentalizadas até agora, com lojas da Tommy Hilfiger, Lee, Benetton. O uniforme escolar das crianças é aquele terninho com suéter e gravatinha – calça social para os meninos, saia plissada para as meninas.
Esse é o lugar mais turístico que vi na Índia para os indianos, que vêm às centenas com toda a família ou em lua de mel. Turistas estrangeiros, só alguns senhores ingleses bem de idade. De repente saudosos do lugar onde passaram a infância. Ou de repente apenas curiosos sobre a remota Shimla da qual ouviram falar um dia.
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p.s.: tirem suas próprias conclusões no álbum que acabei de carregar no Flickr.









