Senta

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Esses dias mencionei aqui como a história recente do Laos vem mexendo comigo. Hoje é dia de falar mais disso.

A Segunda Guerra Mundial terminou em 1945 com dois caroços entalados na goela: a Guerra Fria e o futuro das colônias tardias na África e na Ásia. Com pouco mais de 1 milhão de habitantes na época, grande parte iletrados ocupando a área rural, quis o destino que o Laos sofresse os efeitos das duas coisas, seguida e interligadamente. Resultado: 30 anos extras de crueldades e de chagas sociais que custam a curar.

Fracassados os esforços para tentar segurar a colônia, a França desocupou o Laos em 1953, não sem antes deixar um rastro de sangue. Longe de selar a paz, o evento abriu portas para um futuro ainda pior. O poder monárquico instalado encontrou resistência de comunistas influenciados pelos vizinhos Vietnã e China. Foi o suficiente para atrair a atenção e a antipatia dos Estados Unidos, então obcecados contra a expansão vermelha na Ásia. Com o respaldo do governo local, os EUA viraram sua artilharia para as áreas montanhosas ao leste do Laos. Tinham até sua própria base aérea escondia por lá, de onde saiam missões a cada oito minutos nos períodos mais movimentados.

Mas enquanto a Guerra do Vietnã comia solta na televisão, no supostamente neutro Laos tudo era segredo (devidamente encoberto pelos simpatizantes do status quo). Segundo consta, o país tornou-se o mais bombardeado per capita do mundo entre as décadas de 1960 e 1970.

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O fracasso americano no Vietnã desencadeou a suposta paz civil no Laos logo em seguida. Os comunistas declararam a revolução em 1975 e permanecem até hoje no poder. A guerra acabou, mas o ritmo rural do Laos, onde o tempo corre em outro passo, trouxe mudanças pouco expressivas nos últimos 40 anos.

Exposições e documentários lembram que explosivos hibernantes ainda matam e aleijam, alguns casos por acidente, outros porque miseráveis procuram metal para vender a preço de ouro. O banco da pousada, a cerca do restaurante, o barco, são cascas de bombas adaptadas. A moda local tem fortes referências militares (demorou até entender que aqueles camuflados na rua eram civis). O prazer de explorar a deslumbrante natureza vira certa apreensão quando uma equipe anti-bomba aparece para limpar a área. Dá um nó na garganta ver enormes buracos redondos enfiados entre campos verdejantes e imaginar como aquilo foi parar ali. Se tinha alguma casa, se alguém morreu. Se o cenário parecia com os desenhos hoje expostos no museu, cheios de tinta vermelha e de cabeças degoladas.

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As pessoas do Laos são amigáveis, mas carregam um quê de sofrimento e de cansaço ainda fresco. Um rapaz me conta que seu pai escolheu o lado errado e lutou com os Estados Unidos na época. Pergunto se é verdade o que vi em um documentário – que o governo persegue e mata esses clãs até hoje como retaliação. Ele dá um sorriso amarelo, faz que não com a cabeça e desconversa, mas os campos de refugiados na Tailândia aparentemente dizem o contrário.

Em outro documentário, uma senhora contava aos prantos que os habitantes do Laos foram massacrados por um inimigo que sequer conheciam, nem antes nem durante o conflito, quando só choviam bombas do céu. Outro dia fiquei confusa ao ver um senhor usando boné com a bandeira dos Estados Unidos.

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Autodeclarado o mais pobre do Sudeste Asiático, hoje o país recebe ajuda financeira de várias potências econômicas e organizações, com parcerias amplamente divulgadas em placas e cartazes.

Escaldada com as maldades do mundo, me pergunto se é caso de devida culpa passada ou de escusos objetivos futuros. O povo do Laos não merece mais sofrimento.

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Compêndio – Transporte no Laos

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Cena 1

Meu primeiro ônibus no país. O tíquete comprado na agência em Luang Prabang ia até Phongsali, no extremo norte. Cerca de 14 horas de viagem sem troca de ônibus, saindo da rodoviária às 16h30, disse a moça. “Nossa, nem sei porque tanta gente reclama do transporte aqui, tudo tão fácil!”. Ela riu.

Passam 17h30, 18h30, 19h30, leio livro, jogo Candy Crush, nada. Perto de fechar a bilheteria, o tiqueteiro coça a cabeça e sugere que eu me junte aos locais na mesma situação, pegando ônibus até Oudomxay, no meio do caminho.
– E ninguém sabe onde está o ônibus atrasado? O motorista não tem celular?
– (faz não com a cabeça)
– Mas que hora esse outro ônibus chega em Oudomxay?
– (faz 2 com a mão e mímica de dormir)
– E que horas sai o próximo ônibus de lá até Phongsali?
– (faz 9 com a mão)
– Ah.

Já vou passar a noite em uma rodoviária desconhecida no interior do Laos, sou a única ocidental, e ainda percebo um valor menor na devolução do dinheiro. Parece que uma parte ficou com a agente de turismo sorridente.

Às 2h30, saltamos na tarantinesca rodoviária de Oudomxay. Quando afofava a tralha para dormir em cima, uma buzina reverberou ao longe. Era o suposto ônibus direto das 16h30 passando à toda (mas isso só soube depois). Num salto, fiz como os locais e disparei gritando na rodovia escura, já sem saber se o mais trambolho era eu ou a mochila. Cheguei em Phongsali na tarde seguinte, 8 horas depois do previsto. Mas deu tudo certo.

Cena 2

O objetivo era pegar um ônibus em Phongsali e chegar ao porto fluvial de Hat Sa. “O que pode dar errado em 21 quilômetros?”, pensei. Juntamente com outros moradores locais, quatro turistas aguardávamos o dito ônibus desde às 7h15. Era para sair às 8h, mas já passava das 9h15. De repente a rodoviária esvazia, o guichê de tíquetes fecha, e quando nos damos conta, sobramos os quatro forasteiros na festa segurando a vassoura. Tentamos parar o tiqueteiro, que saía de fininho com toalha de banho e escova de dentes na mão.
– Mas o que está acontecendo?
– (faz não com a cabeça, aponta para a rodoviária)
– Não vai ter ônibus? Pode ter ônibus mas você não sabe?
– (confuso, abre caminho na nossa barricada e continua andando).

A chinesa do grupo consegue parar uma caminhonete que passava pela estrada, felizmente dirigida por chineses (eles estão construindo uma hidrelétrica na região). Segundos depois, descolamos carona na carroceria. Chacoalhamos uma hora na lama, que ficou toda na cara e na roupa. Do suposto ônibus nunca tivemos notícia. Mas deu tudo certo.

Cena 3

Disse o livro que sair de Sam Neua, no leste do Laos. e chegar à cidade turística de Vieng Xai, a 30 quilômetros dali, é moleza. Consta que tem transporte público às 10h, 11h e 13h. Cheguei na rodoviária às 9h50. “Why are you so late?”, disse o tiqueteiro, mal disfarçando a graça com a minha desgraça. O único ônibus do dia havia saído há cinco minutos.
– Mas não é possível, o livro falava todos esses horários!!!…
– As coisas mudam toda hora no Laos.
– Ah.

Comecei um cabo de guerra com um dos motoristas de tuk tuk que estava na animada jogatina regada a laolao (a cachaça daqui). Usando o sádico tiqueteiro de intérprete e minha melhor cara de gato de botas, consegui uns 30% de desconto. Ainda assim, fui surrupiada em mais de 22 vezes o preço da corrida normal. Mas deu tudo certo.

Cena 4

Não consigo dirigir moto. Logo, decidi fazer 30 quilômetros de Phonsavan até a antiga capital provincial de Muang Khoun de bicicleta.
– Mas só se tiver como voltar de transporte coletivo com a bicicleta no teto, moço. Tem jeito? Já fiz isso na Tailândia…
– Sim, pode ir tranquila, fazem isso sim, garantiu o oficial de turismo.

Na pior das hipóteses, sabia que podia apelar para um tuk tuk privado como da outra vez narrada na história acima. Até porque o surrupiamento do Laos é muito melhor que o melhor dos descontos no Brasil.

Chegando em Muang Khoun, nada de transporte, público nem privado. Começo o caminho de volta à toda correndo da noite e da tempestade que se aproximavam. Dez quilômetros depois, já entrevada pelo conjunto da obra, apelei para uma família que descarregava sacos na beira da estrada. Vim segurando a bicicleta rodeada de relâmpagos e de sacolas de broto de bambu. Mas deu tudo certo.

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Foto

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Ao contrário do que possa parecer, essa foto não estava pronta para ser tirada. Essas meninas não estavam posicionadas assim, “venha turista”, esperando que eu apontasse a máquina.

Essa foto não teria acontecido se eu não estivesse viajando do meu jeito, sozinha e com tempo para sair do circuito turístico usual. Se eu não tivesse acordado em um dia bom, dispensando o tour de carro e achando que tinha condições de pedalar 60 quilômetros ida e volta para o interior do interior do Laos. Não era apenas economia, era ter tempo sem um guia me importunando. Não era apenas disposição, mas a inabilidade de pilotar uma moto.

Essa foto não teria acontecido se eu não estivesse exaurida, carregando a bicicleta no empuxe, bem na hora da saída da escola. Se a vila não fosse pequena o suficiente para malemá saber o que é turista. Se o fluxo de centenas de rostinhos que passavam por mim não estivessem transmitindo tanta esperança em um mundo melhor que deu até vontade de chorar. Se, talvez percebendo meus olhos cheios d’água, um grupo de meninas curiosas não tivesse começado a caminhar na minha volta entre risinhos tímidos. Se não estivéssemos indo para a mesma direção.

Não teria acontecido se eu não fosse péssima em mímica, e elas ótimas em rir. Se não tivesse uma máquina modernosa de câmera reversa que permite ver como vai sair a foto, e quantas tiramos juntas. Se elas não se deixassem fotografar sozinhas e saíssem correndo, como tanto vi acontecer com turistas afoitos por aqui.

Essa é a história dessa foto.

p.s.: aos que apostaram contra a pedalada de 60 quilômetros, estão cobertos de razão. Fomos rebocadas no meio do caminho de volta, eu e bicicleta, confiantes na boa vontade de uma família local que passava de caminhonete.


Laotizando

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Passa de meia noite. Escrevo esse post de um vilarejo incrustado entre escarpas calcárias gigantes no norte do Laos. Na casa bem ao lado, caixas de som ecoam desde manhã uma mistura de canto tradicional, sino, pandeiro e rabeca rústica. A rua, fechada com tendas, mesas e comida, reúne gente em frente a uma casinha de boneca com luzes e dinheiro pendurados. Vibram e batem palmas a cada final de repente berrado ao microfone. Tudo que consegui apurar é que se trata do evento fúnebre póstumo de um querido pai.

É esse país que vem me enredando nos últimos dias, entre encantos e desenganos. Exceto pelos olhos amendoados, o Laos, melhor dizendo, Lao PDR (People’s Democratic Republic, após a adoção do comunismo em 1975), em nada lembra os vizinhos visitados até aqui. O deslumbre acentuado da natureza e da diversidade étnica batem de frente com a indigesta história política recente de mortes e de miséria humana. Meu coração fica entre derretido e estilhaçado a cada nova investida na cultura local.

Não sei o que mais me pegou até agora.

Se o clima interiorzão do Brasil, de economia essencialmente rural (a maioria dos industrializados vem do Vietnã e da China).

Se o relance de sombra a cada “saibadee” (o oi daqui), resultado de um século de guerras e de tensões políticas que ainda se manifestam em assassinatos e explosões de bombas hibernantes.

Se o povo dócil e festeiro apesar de tudo, ainda não descaracterizado por invasões turísticas. Do tipo que adora um churrasquinho embalado a karaokê e convida para brindar o aniversário com uma BeerLao (servida com gelo).

Se a diversidade que junta maioria budista, culturas tribais, herança vietnamita e chinesa e toque colonial francês.

Se o clima de temperaturas mais amenas e chuvas diárias (que dirá depois da experiência forno-humano na Tailândia e em Mianmar).

Se a natureza padrão super deluxe plus, especialmente exuberante a bordo dos majestosos rios Mekong e Nam Ou.

Se a beleza mágica da antiga capital real Luang Prabang, patrimônio tombado pela Unesco.

Passa de duas da manhã. Cansado de tanta barulheira, o pai mandou um vendaval para acabar com a festa.


Gatinhas do norte

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Depois do tratamento de choque em Bangkok para acordar da bucólica Mianmar, 15 horas de trem levaram ao norte da Tailândia, ainda inexplorado por aqui.

Relatos de outros viajantes indicavam que o país pode ser dividido em dois: o sul das ilhas ensolaradas e vocação hedonista; o norte verde-montanhoso de alguma herança cultural e ecológica. Entusiastas garantiam preços mais camaradas e gente mais amigável (no sul, sorrisos só de quem não vive do turismo).

Em um passado não muito distante, o norte da Tailândia era um estado tributário independente, autonomia ainda sentida na língua e costumes próprios. Alardeiam a presença de minorias étnicas embrenhadas na mata montanhosa, algumas com origem nas vizinhas China e Mianmar. Mas não espere uma terra misteriosa e esquecida: como no resto do país, aqui também está cheio de turistas. A boa notícia é que dá para cortar boa parte deles cada quilômetro vilinhas adentro.

Chiang Mai é o pólo regional, o passado medieval lembrado apenas pelo muro em ruínas que cerca a cidade velha (que já é nova). A renomada universidade local atrai jovenzinhos em scooters que povoam bares esparramados pelas calçadas, cafés wifi e mercadinhos hipsters. O vizinho Parque Nacional Doi Suthep-Pui, abundante em verde, templos, cachoeiras e vistas panorâmicas, é um escape a temperaturas mais amenas (a cênica estrada até o topo um hit entre motociclistas). Sem moto? Espere uma bem-vinda carona a cada curva.

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Suposta Campos do Jordão dessas bandas, a fama de Pai decolou mesmo depois de um filme romântico rodado ali. A sensação é de que a cidadica de 3 mil habitantes tem menos moradores que turistas, estes interessados em nada mais complicado que flanar pelas ruas sossegadas ou tomar banho de piscina/cachoeira. Só não ouse incomodar as minorias étnicas em trekkings pela região – e sair com a impressão de invadir a casa alheia sem ser chamado.

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Chiang Rai seria apenas a priminha quero-ser-Chiang Mai e plano B para quem não cansou de natureza, não fosse um detalhe muito peculiar. Alguém ali resolveu investir nos artistas locais, e os resultados são o Templo Branco e a Casa Negra, uma rajada de frescor artístico contra o mais do mesmo. Valeram cada hora de bicicletada no sol quente.

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A partir de hoje, Mundolândia vai para o Laos, ansiosa por heranças de guerra e baguetes.


Seis razões para amar Bangkok

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Parece desenho animado, exagerada em tudo. Mas Bangkok esconde outros encantos não tão óbvios. Depois da terceira passagem por lá, eis alguns da minha seleção pessoal:

1) Diferente tipo igual
A capital tem presença maciça de ladyboys (travestis) e de casais formados por idosos ocidentais e jovens tailandesas. O
mais legal é conviver diariamente com essas opções no metrô e no caixa do supermercado, um exercício de neutralidade recomendado a todos (inclusive os que se consideram neutros).

2) Bangoquinha paz e amor
O que é o que é: parece São Paulo, é grande, doida e legal como São Paulo, mas não precisa andar na rua com medo de ser assaltado e de morrer? Sim, ela mesma.

3) Curtas
Aqui as moças locais e farangs (estrangeiras) podem andar praticamente peladas que ninguém nem tchum (e olha que fiquei de gaiata observando as reações masculinas com as sainhas-micro passando lá e cá). Nenhuma olhada intimidadora, nenhum fiu fiu para contar história. Vulgo paraíso na Terra.

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4) Taxis-banana
Precisa se locomover e está longe do trem aéreo/metrô? Pegue um taxi rosa-choque novinho com ar condicionado bombando e não caia para trás quando, depois de 30 minutos, a conta der R$ 6 (exija taxímetro).

5) Password?
Até as biboquinhas cobertas de lona rasgada têm conexão gratuita em alta velocidade (e pode usar horas com uma água na conta). Mas se nem a água quiser pagar, as maiores companhias telefônicas oferecem wifi de graça nas principais áreas da cidade.

6) Café de rua (essa mais para Tailândia que para Bangkok)
Aqui o café e suas variações leitosas, além das opções ice ou frapê, são considerados streetfood. Sabe a estrutura da barraquinha de cachorro quente? Vai ver tem café lá. <3

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Festando debaixo d’água

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Fosse nos primórdios do mundo, Noé começaria a construir a barca ao ver o que se passa em Mianmar em meados de abril. Durante quatro dias, o país mergulha no festival budista que comemora a chegada do ano novo, o Thingyan, também conhecido como Water Festival. Não haveria nome mais apropriado.

O estado de euforia é igualzinho ao do nosso Carnaval, com a diferença de que lá tudo gira em torno dela, a água (cerveja, whisky e outras misturas alcóolicas como fortes coadjuvantes). Famílias e donos de negócios se posicionam nas calçadas com baldes, bacias, mangueiras e tinas enormes, obstinados em molhar quem quer que se aproxime. Alguns mais eufóricos usam mangueira de bombeiro mesmo. Armas e pistolas de água são um hit entre as crianças, as mais animadas da festa.

O Thingyan é uma festa móvel, pois o foco de atenção não está em um lugar específico, e sim em quem passa pela rua em motos ou pick-ups abarrotadas de gente (a pé só turista mesmo). Palcos e equipamentos de som super potentes brigam pela atenção da massa enlouquecida e encharcada. Nada mais vip que ter lugar nos camarotes elevados na calçada com direito a uma mangueira para chamar de sua.

Nas principais cidades, a balada começa por volta das 8h e vai até tarde da noite, com shows e apresentações locais. Exceto por barraquinhas e alguns restaurantes, tudo fecha durante o período, e a única forma de ir a algum lugar é de avião. As ruas ficam tão inundadas que as crianças conseguem nadar na água imunda que se acumula nos espaços entre as sarjetas. Em Mandalay, o enorme canal de onde sai a maior parte do suprimento baixa uns bons centímetros em apenas um dia.

Colocar o nariz fora do hotel para a mais simples tarefa significa encharque na certa. Sair da cidade? Não adianta. Cada lugar, cada vila, está no mesmo clima subaquático. Depois do terceiro dia, ocidentais se perguntam se eles não se cansam de fazer exatamente a mesma coisa por quatro dias seguidos. A resposta é não, não se cansam.

Quando ensaiava ficar de mau humor depois de horas ensopada, olhava aquelas carinhas alegres se divertindo como nunca a cada baldada em cheio na estrangeira e a rabugice ia embora. Não tem como não rir junto e se sentir privilagiada por estar ali naquele breve espaço de tempo. Para ficar seca, tenho toda a eternidade.

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Teste Mundolândia:

Se você 1) não gosta de ficar molhado; 2) tem nojo de colocar os pés e as canelas em água imunda; 3) tem um gosto musical refinado e odeia som alto; 4) não gosta de bêbados e de aglomerações humanas; 5) precisa se locomover por terra pelo país em curto espaço de tempo. R: Não venha para Mianmar durante o Tingyan (nem na semana anterior).

Se você 1) adora a ideia de se refrescar com água em um sol escaldante; 2) é paciente, tolerante e entusiasta da diversidade 3) gosta de ir a fundo na cultura local; 4) busca verdadeira interação com as pessoas do país visitado; 5) não tem problemas com calendário. R: Venha já levar sua baldada.


Estilo Mianmar: coisas a saber

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Vaidade

“Se o país ficou tanto tempo fechado, eles não devem ligar tanto para beleza”. Há! Espelhos por toda parte refletem looks e penteados caprichados em fios loiros e vermelhos (homens e mulheres), sem falar nas trancinhas afro com fitas neon embutidas. Ah, e os homens adoram usar saia comprida, o longyi.

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Thanaka até em propaganda publicitária de cerveja

Sorry, MAC

Nunca vi ou ouvi falar de thanaka até chegar em Mianmar, onde o negócio é praticamente um símbolo nacional. 99% da população feminina e de bebês (e parte considerável de homens e de garotos) exibe essa maquiagem natural  no rosto e no corpo, a cor amarelo-pálida destoando grosseiramente do tom da pele. Dizem que suaviza, esfolia e protege do sol.

Crepúsculo

Só não choquei muito porque já tinha visto na Índia, mas aqui tem muito mais. Primeiro você repara em alguém cuspindo sangue pela janela do ônibus. Conversando com um local, a boca do interlocutor está toda manchada de carmim estilo terror B. Antes de correr temendo tuberculose ou ataque vampiro, saiba que esse vermelho vem do consumo da noz bétel, usada como um refrescante bucal. Passam o dia, mehor dizendo, a vida, mascando isso. (Não tive coragem de pedir uma foto da boca vermelha, mas é isso aqui).

Estilo!

Estilo!

Punks

Ex-colônia inglesa, Mianmar tem uma surpreendente ala fiel às roupas escuras, maquiagem (rosto branco, olhos pretos) e cabelos espetados, zanzando de moto para cima e para baixo.

Gananstai

Se tem um cantor que venceu na vida, versão Mianmar, ele atende por Psy.Em um país com influências culturais externas quase nulas, Gangnam Style é tão viva e popular como se tivesse sido lançada ontem. As crianças não param de cantar, os adultos assoviam. Sabe o toque de celular? Ele. Sabe aqueles brinquedinhos musicais chatos de camelô ? Aperta o botão e adivinha o que sai.

Tinindo

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Curral aquático

Além do tempero da comida e do calor (humano e ambiente), Mianmar e Brasil têm mais em comum: o gosto pela água e pela limpeza. A principal tradição anual consiste em jogar água uns nos outros por quatro dias. Ribeirinhos passam o dia tomando banho (muitas vezes levam junto os animais). Ruas e calçadas são lavadas e varridas todo o tempo. Uma das formas de adorar Buda é jogando água em suas imagens. Carros e ônibus são enxaguados a cada parada na rodovia, além de passarem por uma limpeza completa quando chegam ao destino. Segundo explicaram, a superstição garante proteção na viagem.

20140422-140223.jpgAgachamento

Assim como os demais países do Sudeste Asiático, Mianmar tem uma gama infinita de bodeguinhas baratas e barracas improvisadas vendendo comida de rua. Mas o que chama atenção mesmo é o tamanho das cadeiras e mesas, dessas para criança brincar de casinha. O porquê, me pergunto até hoje.

*de última hora, mas não menos importante* Que qué isso? No restaurante, o som alto de um beijo estalado, desses que no Brasil seria cantada da pior espécie com olhada feia de repreensão. Em Mianmar, apenas o jeito tradicional de chamar a atenção do garçom. Mesmo na décima vez, causa espécie.


Sobrevoo

 

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Cruzar a fronteira em direção à Mianmar depois da overturística Tailândia foi um acontecimento. Apenas alguns passos de distância (entre Mae Sot e Myawaddy) para o ônibus vip luxo virar uma vanzinha calorenta com passageiros espremidos entre motos – quando não empoleirados no que apelidei de “pick-up gaiola”. Uma única ponte, e a estrada sem maiores sobressaltos se transformou em pista única congestionada onde só funciona um sentido por dia.

Enquanto me preparava para uma mochilada casca-dura (afinal, o país passou 50 anos ensimesmado em dificuldades internas), Mianmar deu uma pirueta e saiu dançando. Os estilhaços voando para todo lado não tornaram o ambiente duro, sujo ou feio, muito pelo contrário. A Mianmar para turistas é simples, mas limpa e bem cuidada. Inadimissível à primeira vista, só mesmo o calor: 22h, 40 graus em Mandalay (pausa entre 12h e 15h30 para não começar a alucinar no meio da rua).

A maioria budista se impõe na coleção de templos que transbordaria uma vida de visitas e preces. Tantos (mais de 2 mil apenas em Bagan) que muitos acabam abandonados, enquanto os mais famosos são fontes inesgotáveis de doações em dinheiro e metais preciosos. Também é enorme a quantidade de monges em mantos vinho, laranja e rosa zanzando por todos os lados. Cabeças raspadas, óculos escuros e motos, eis um combo cool.

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Em Mianmar se bebe muita cerveja e whisky, enquanto o tradicional bolinho doce frito (estilo o de chuva) é apreciado com uma mistura de café, chá preto e leite condensado. A comida, de tempero modesto para os padrões asiáticos, lembrou os refogados lá de casa. Tudo fecha entre 21h e 22h, mas os diálogos das adoradas novelas locais estilo pastelão explodem nos autofalantes dos ônibus interprovíncias até tarde da noite. A despeito da escalada pop da antiga Birmânia, hotel com ar condicionado sai a R$ 25, 10 horas de ônibus confortável a R$ 14, um prato de comida a R$ 4.

Meu maior exercício mental era tentar imaginar aquelas pessoas simples, alegres e honestas, tão amigáveis, envolvidas em algum tipo de conflito violento onde meus olhos não conseguiam ver. Porque nossa interação era sempre um sorriso, sempre um “hellooooo” gritado de onde quer que seja. Pareciam felizes por receber visitas depois de tanto tempo. “Are you happy?”, perguntavam, na esperança de que compartilhássemos do mesmo sentimento.

Uma vez, o chinelo de um amigo arrebentou a correia durante um passeio. O homem do lado tirou as sandálias que estava usando para oferecer.

<3 (da sumida Mundolândia Productions)


Mianmar, breve introdução

Vila em Singaing, próxima a Mandalay

O bom de a viagem acontecer só agora é que, fosse há cinco anos, Mianmar estaria fora da lista. Depois da independencia dos ingleses em 1948 e breve período de governo civil, os militares chegaram ao poder em 1962 e fizeram uma série de intervenções pouco afeitas ao espírito democrático e ao desenvolvimento do país. Lá estão meio que até agora – mas pelo menos sob a alcunha civil após eleições convocadas em 2010 e aparente processo de pacificação e de abertura política.

Hoje Mianmar é indiscutivelmente um destino turístico (1 milhão de visitantes por ano, segundo orgãos oficiais), mas longe considerar que tudo reine na mais santa paz. Um amigo recém-egresso de um programa humanitário em Rakhine, no noroeste, conta que o conflito entre budistas e muçulmanos deixou centenas de mortos e milhares de desabrigados em três anos. Em outubro último, um atentado a bomba no quarto de famoso hotel em Yangon deixou uma americana ferida. O motorista do taxi avisa que, em uma cidade próxima dali, a “briga” está feia. Passagens de onibus entre Mandalay e a fronteira com a Tailandia em Tachileik são altamente desaconselhadas por agentes de turismo – “dangerous, not good”.

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Tarde de domingo em Yangon

Sinceramente? Na bolha dos destinos turísticos evidentemente bombados pelo governo e pelas agências locais (estive em Yangon, Mandalay e arredores, Pyin Oo Lwin, Inle Lake, Bagan, Hpa-An) nenhum resquício aparente de animosidade. Aos olhos dos turistas, Mianmar está mais para queridinha entre os países exóticos-intocados que para um destino perigoso a ser evitado.

Intocado, pero no mucho. Blogs que alertavam para falta de ATMs e internet no ano passado já estão ultrapassados, e a quantidade de lojinhas com souvenirs impressiona. Os preços sobem na mesma proporção da lotação dos hotéis, enquanto investidores fazem pipocar resorts aqui e ali. Carros caríssimos dos modelos recém-lançados dividem a rua com carroças, todo mundo de celular na mão.

Hotelão em Yangon

Hotelão em Yangon

Não fomos poucos os mochileiros que comparamos Mianmar com o que deveria ser a Tailândia de 30, 40 anos atrás, a estrutura meio capenga compensada com folga pela simpatia e hospitalidade genuinamente sentidas em cada troca com os locais. O duro é pressentir que essa realidade deva sucumbir à avalanche de turistas que prometem chegar nos próximos anos, atraídos justamente pela rusticidade e relativa ausência de turistas por ali. Paradoxo complicado de resolver.

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p.s.: essa série  de posts está sendo escrita após a temporada em Mianmar, já de volta a Bangkok. Peço desculpas pelo longo sumiço, mas lá as coisas foram meio corridas; o notebook morreu; a internet existe, mas ainda é lenta; e, diferentemente dos outros países, eu não tinha um SIM local com internet para o celular. E ainda corro sério risco de perder as fotos e vídeos dos últimos seis meses de viagem que estavam no falecido HD, sem backup. Quer dizer.

p.s.2: olha o mapa da viagem atualizado aqui, gente!